O Problema do Mal/Paradoxo de Epicuro: o que ele realmente é e a visão de Brian Davies sobre o assunto

a Infelizmente, para os neo-ateus, já refutei no site Paradoxo de Epicuro/Problema do Mal (veja também Paradoxo de Epicuro/Problema do Mal – Parte II e Paradoxo de Epicuro/Problema do Mal – Parte III (algumas observações). (Nota do Logos: todos estes links e artigos estarão no site em breve).

É claro que isso não me faz parar de ler sobre o assunto (o que seria um sinal de desleixo intelectual). Dessa forma, estive recentemente estudando (apenas numa primeira leitura) o livro “The Reality of God and the Problem of Evil”, escrito pelo filósofo Brian Davies (capa do livro ao lado), que me leva a fazer esse post.

Todo problema do mal começa com a análise do seguinte conjunto:

  • (1) Deus é todo poderoso;
  • (2) Deus tudo sabe;
  • (3) Deus é todo bom;
  • (4) O mal existe;

O conjunto acima não possui nenhum tipo de contradição – nenhuma das afirmações é a negação direta de outra, nem a sua conjunção gera alguma contradição. Para que a contradição apareça, seria necessário adicionar uma ou mais proposições ao conjunto. Como (suponho) já estamos acostumados e sabemos quais são, em tese, essas proposições (“Se Deus é isso, então ele aquilo”… etc etc), vou me poupar o trabalho de fazer toda aquela explicação novamente (se você ainda não sabe, leia os artigos citados no início do post).

O que ficou claro, para mim, ao ler o livro, foi algo que eu já havia notado, mas que talvez não tivesse exposto de forma adequada no blog: o problema do mal não é, por si, uma prova da veracidade do ateísmo. Ele apenas nos obrigaria, se correto, a negar a conjunção de uma das três primeiras afirmações com outras duas. Talvez Deus seja onisciente e onibenevolente, mas não seja onipotente; logo, o mal existe (e Deus também). Talvez Deus seja onipotente e onibenevolente, mas não onisciente; assim, o mal existe (e Deus também). Essa é a limitação máxima que o Paradoxo gera.

No fundo, o problema do mal apenas nos obriga a repensar como construimos (1), (2) e (3).

Os nossos amigos da Free Will Defense optaram por refletir sobre o conceito da onipotência. Eles afirmam (1), mas nos indicam que não é possível, mesmo para um ser onipotente, causar ações livres. Uma ação é, supostamente, livre se ela não é causada por nenhum agente externo. Assim como Deus não pode fazer um círculo quadrado, ele não pode causar uma ação incausada por outro, pois isso é uma impossibilidade. E a partir daí teríamos a justificativa para o mal (mais detalhes no primeiro artigo citado). No Teísmo Aberto, eles provavelmente reconstruiram todas as três primeiras afirmações, mas com foco na onisciência de Deus (ou seja, em ‘(2)’).

O diferencial do livro de Davies, se eu entendi corretamente, foi que ele reconstruiu ‘(3)’. A forma usual de interpretar a fórmula “Deus é todo bom” nos debates filosóficos de hoje é “Deus é moralmente bom [i.e., moralmente perfeito]”. A partir daí, os ateus reclamariam que estão descontentes com o cuidado de Deus do mundo; já os amigos de Deus se apressariam a negar isso e dar algumas desculpas morais para justificar o seu comportamento (essa frase e comparação é de criação dele, não minha).

A proposta de Davies é resgatar o que ele alega ser a concepção do teísmo clássico. Só poderíamos dizer que “Deus é moralmente bom” se ele fosse uma pessoa sujeita a certas leis e deveres morais que ele deve cumprir. Pelo padrão utilizado atualmente, dizer que Deus é uma pessoa seria dizer, alega o livro, que Deus é uma substância incorpórea [cartesiana], um ego, um ‘eu’, que conhece, raciociona, acredita a partir de seu “mundo privado”, assim como nós. A diferença de Deus estaria no fato de que ele não tem várias das nossas limitações em poder e conhecimento. Deus, então, observando tudo, teria que fazer uma escolha entre várias opções de ação. E seu diferencial em ser moralmente perfeito é que ele sempre toma a ação moralmente correta, o que faz ele digno de louvor moralmente.

Toda essa construção é considerada por Davies como absurda. Deus é o Criador, não uma criatura (de certa forma, ele tomou uma linha parecida com meu artigo Moralidade de Deus é julgada pela moralidade dada aos humanos. ). A ideia de uma substância incorpórea “privada”, diz o livro, já teria sido destruída por Wittgenstein e por Aristóteles. Se isso não pode se aplicar aos humanos, também não se aplicar a Deus. E mais: sendo o Criador, ele está radicalmente distante, em qualificação, das criaturas. Deus não é uma “pessoa sem corpo” com super-poderes e super-conhecimento, mas uma realidade infinita auto-subsistente incomparável com qualquer pessoa humana. Por fim, considerar que Deus tem obrigações morais significaria pensar que Ele tem uma vida correndo na qual ele vai decidindo e agindo e ele pode fazer isso de forma boa ou má. Mas Deus, como um Ato Puro, não tem nenhum tipo de potência não realizada. Isso implica que ele é imutável, incapaz de mudança e a atemporal. Isso torna Deus incapaz de ser um ‘agente moral’, que ‘consegue’ ou ‘não’ cumprir certos ‘deveres’ ou ter certas ‘virtudes’ ou ‘vícios’. “Ele é quem Ele é” (para utilizar uma expressão bíblica) e nada mais.

Isso faz de Deus um ser moralmente indiferente? Nas palavras de Davies (Appendix, pg. 251), sim, em certo sentido:

Em um sentido, eu, é claro, realmento penso que Deus é moralmente indiferente. Eu não penso em Deus como um centro de consciência (um “Eu” cartesiano) coexistindo temporalmente co outras coisas (como qualquer bom ser humano) ansioso para fazer a coisa certa em termos do que ele/ela deve agir. Nem penso em Deus como um ser literalmente comprometido emocionalmente e um combatente moralmente louvável contra o mal em todas as suas variedades. Como a fonte de todo bem criado, e como Bem sem qualificação, Deus não é temporal (e, portanto, não é ansioso literalmente por nada). Nem sequer pode estar sujeito à padrões de comportamento corretos pensados como obrigatórios para Ele. E uma vez que as paixões só pertencem à coisas temporais agindo em outras do mesmo tipo, Deus, eu mantenho, não está comprometido com nada. Nem está literalmente envolvido em nenhuma luta. Ele é o Criador de todas as coisas nos Céus e na Terra. Lutadores existem num contexto em que eles tem que tentar prevalecer sobre indivíduos que são, em um sentido relevante, seus “pares” (nota: no sentido de “iguais”, “comparáveis”). Pensar em Deus como um lutador dessa maneira, entretanto, é fazê-lo parte do mundo que ele criou. E isso é pensar nele de uma forma totalmente não-bíblica e em termos antropomórficos inaceitáveis, e não como aquilo responsável por existir qualquer mundo de indivíduos no fim das contas.

Mas então ele nega que “Deus é todo bom”? Não, de forma alguma. Ele simplesmente divorcia do sentido de ser bom moralmente. Parte da metafísica clássica está a noção de que o “bem” pode ser convertido com o “ser” (no jargão atual, eles diferem apenas em sentido, mas não em referência). Como Deus é o Puro Ato, a Realidade sem Nenhuma Potência Não Realizada, e algo só é na medida em que está em ato, algo que está totalmente em ato, dada a doutrina referida anteriormente, também é “totalmente bom” (penso, na verdade, que a melhor forma de colocar isso para um leigo seria dizer “totalmente perfeito”, um ser “sem nenhum tipo de deficiência”).

Você pode alegar que essa concepção diverge radicalmente da Bíblia e do Cristianismo, que nos ensina que “Deus é Amor”. O autor gasta boa parte do livro tentando demonstrar que não é esse o caso. Ele também gasta mais páginas falando sobre Deus ser moralmente indiferente em outros sentidos. Eu sequer estou aquilo para defendê-lo.

O que ficou claro nessa primeira leitura do livro é isso: ou nós temos certeza do que estamos falando com (1), (2) e (3) ou a discussão sobre o Problema do Mal é estéril. Este livro é incrível. É como ler um comentário sobre a filosofia tomista. Brian Davies responde ao problema do mal de uma forma que quase nenhum outro autor contemporâneo até mesmo tentou. Ele mostra as falhas em outras formas de atender o problema, e então defende o seu próprio argumento. Este livro é um dos livros mais importantes já escritos sobre o problema do mal.

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