Cristianismo: religião do egoísmo?

 

Para Marx, a religião cristã é “a essência da religião”, porque realiza ao máximo a definição de “religião”. Por isso, deve ser considerada “como uma das mais imorais”. Ele chega mesmo a acreditar que os cristãos imolaram verdadeiramente homens e comeram carne humana e beberam sangue humano, celebrando a Eucaristia, tal a sua indisposição para com eles.
Isto porque, para ele, “o cristianismo é a religião específica do capital”. Os pagãos, a seu ver, ainda eram principiantes no ramo da exploração e da escravídáo. Para pregar a escravidão das
massas … faltava-lhes – com efeito – o sentimento específico da caridade cristã”.
Marx vê no cristianismo a religião “que exterioriza ao homem todas as relaçóes” e que por isso permitiu à sociedade da burguesia “lacerar todas as ligações do homem com a espécie”, criando “um mundo de indivíduos atomísticos, hostilmente contrapostos uns aos outros”. No Estado burguês e liberal, com efeito, que eliminou a religião de Estado para admitir a liberdade de
consciência, a religião cristã perdeu toda parvença de função social e comunitária, para voltar a ser “aquilo que ela era originalmente”, isto é, “o espírito … da esfera do egoísmo, da guerra de todos contra todos”, “a expressão da separação do homem de sua comunidade”, “o reconhecimento … do capricho privado do arbítrio’.
São palavras que, antes ainda de ofendê-lo, deixam o cristão estupefacto. Como é que Marx se deixou levar por semelhantes ataques? Por que tão grande ódio e tamanho desprezo para com o cristão?
Uma primeira e parcial resposta poder-se-ia encontrá-la na situação em que as igrejas cristãs se achavam na época. Marx, como era de seu estilo, olhava mais aos fatos do que às palavras, e observando os resultados práticos de 18 séculos de pregação cristã, observando a sociedade cristã como se apresentava a seus olhos, na versão protestante da primeira metade de Oitocentos, achava que ela tinha falido.
Os princípios sociais do cristianismo – escrevia em “Deutsche Brüsseller Zeitung” – tiveram mil e oitocentos anos para se desenvolver; e o que produziram? “Justificaram a escravidão antiga, exaltaram a servidão da gleba medieval, e se declararam dispostos a defender a opressão do proletariado”. Daí a condenação desses princípios “que igualam … todas as infâmias no céu e justificam com isso a continuidade dessas infâmias na terra” e “que pregam a vileza, o desprezo de si mesmo, a humilhação, o servilismo, a humildade, em síntese, todas as qualidades do canalha”.

As Igrejas da Santa Aliança
Para tentar compreender o estado de ânimo de Marx, convém reportar -se ao contexto histórico em que ele viveu. Ora, as igrejas cristãs da primeira metade do século passado não se encontravam nas melhores condições para merecer estima e respeito de quem, como Marx, era filho da cultura leiga de seu tempo. A partir da segunda metade de Seiscentos, com efeito, nascera a ciência no sentido atual do termo, e a cultura europeia gradualmente adquiriu uma autonomia cada vez maior em relação à teologia e ao tradicional pensamento cristão. Este, por sua parte, passava por um momento de estagnação, que o fazia perder cada vez mais o prestígio e a credibilidade aos olhos dos homens de cultura.
Esta situação levou as Igrejas, por um lado, a fechar -se em si mesmas para refugiar -se num pietismo muitas vezes beato, acentuando assim o tema da fuga do mundo, e, por outro, a procurar  proteção e apoio no poder do Estado, nas velhas monarquias absolutas, também elas, em vias de extinção. São as Igrejas da Santa Aliança, que o jovem Marx tinha de mira, entrincheiradas em posições de defesa, fechadas. Era uma situação mais que apropriada para alimentar desconfiança e aversão ao cristianismo, um dos traços característicos da cultura do século passado.

Assim, as igrejas cristãs não estavam preparadas para compreender o que estava amadurecendo também no plano social;  e em particular escapava-Ihes o novo e grave “problema operário”,  que vinha se apresentando por toda parte onde havia desenvolvimento industrial.
No que se refere à Igreja católica, foi preciso esperar 43 anos, desde a publicação do Manifesto, para que se chegasse ao primeiro documento pontifício sobre a questão social: a encíclica Rerum novarum de Leão XIII. Por muito tempo o único remédio para o sofrimento do proletariado foi a beneficência, enquanto que não faltavam vozes “cristãs” que apelavam para a religião como  a única defesa válida da propriedade privada.
Estas observações, de algum modo, poderão fazer -nos entender a aversão de Marx para com o cristianismo, embora não sejam suficientes para justificá-la. Antes de tudo, ele faz remontar aos “inícios” do cristianismo uma decadência concreta ocorrida num período de sua longa história. Além disso, responsabiliza o cristianismo por todas as culpas da sociedade burguesa, nascida do iluminismo e da revolução francesa, isto é, de matrizes não propriamente cristãs. Enfim, ele não vê e não quer ver os méritos históricos do cristianismo no campo social, que também são um fato inegável.

Fonte:  “Por que crer em Deus”, de Desidério Piróvano

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