Uma introdução a objetividade moral

Quando pensamos em moral, normalmente lembramos daquele conceito que muito se propaga em nossas escolas hoje, que diz que nossa concepção moral é oriunda de ações repetitivas de comportamentos vistos como vantajosos para a vivência grupal a fim de manter uma organização sociável entre os membros desse grupo e, uma vez que, com o tempo se estabelece tais comportamentos advindos de observações dos antigos, se tem o que se conhece por comportamentos – ou – ações morais. Sendo assim, vamos entender um pouco mais sobre isso.

Porém, como não temos muito o que digredir acerca da ética para além de Sócrates, nos convém, por ora, fazer uma menção ao período Axial (1) que, no que tange a história antiga, abrange a contemporaneidade de Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Lao-Tsé e Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e o Deutero-Isaias em Israel. Esses grandes e ilustres nomes pisaram a terra em algum período entre 600-480 a.C., onde, cada um a seu modo, apresentaram visões de mundo – cosmovisão – por meio do qual estabeleciam sua superioridade aos demais povos, sempre buscando superar as estruturas mitológicas e/ou religiosas precedentes. Nesse período e por meio desses grandes homens “[…] se enunciaram os grandes princípios e se estabeleceram as diretrizes fundamentais de vida, em vigor até hoje (2)”.

Nesse percurso nasce a filosofia. No século VI a.C. na Jônia, e no século seguinte em Atenas. Com isso substituindo, pela primeira vez na história, o conhecimento obtido pelas tradições mitológicas para a lógica da razão. Começou-se a avaliar a natureza não mais pelos deuses como explicação dos fenômenos naturais tampouco da própria realidade existencial do ser humano. Face a isso, Sócrates não se dava muito a discutir acerca de mitologias, preferia se ver concentrado no conselho inscrito na fachada do templo de Delfos: conhece-te a ti mesmo. Aqui é que surgem as leis e, por conseguinte, objetividade moral e direito civil.

Antes da discussão política e da instauração das leis, “em todas as civilizações a vida ética era dominada pelas crenças e instituições religiosas, sem que houvesse nenhuma distinção objetiva entre religião, moral e direito. […] No passado, a religião havia sido o fundamento de toda a organização política e social (3)”. Tendo isso em mente, a máxima dita por René Girard ganha ainda mais aceitação no que tange a origem das culturas: “toda a cultura se origina da religião (4)”. Segundo Girard, toda a religião surge através de um modelo sacrificial, o qual ele denomina de bode expiatório. Essa proposta girardiana trabalha com o fato de que cada cultura religiosa erige uma vítima pela qual todos se concentram em redor para oferece-la em sacrifício. Então, a partir de um sacrifício – bode expiatório – surgem todas as religiões. Como as religiões surgem antes de qualquer outra concepção sistematizada de cultura: política, sociológica, filosófica, etc.; tudo o que se tem por padrão de comportamento é originado pela convicção do grupo de que as ações que devem obter como padrão para agirem é advinda da divindade na qual acreditam. Mesmo que para isso, por não saberem ao certo como expressar inteligivelmente tal concepção moral objetiva, criam-se as descrições mitológicas, o que importa é saber ler essas descrições e extrair delas as máximas que regiam àqueles humanos de outrora.

Para cada sentimento humano, criavam-se deuses como que símbolos para representar esse sentimento, assim como o eram os deuses que representavam os fenômenos naturais. Como diz Keith Ward, “Deuses são símbolos. Mas o que é simbolizado não é ‘natural’, no sentido de ser puramente físico ou explicável em termos de leis da física ou de outras ciências experimentais isoladas. Os deuses não simbolizam fenômenos naturais. Seria mais apropriado dizer que eles outorgam o poder a fenômenos naturais para simbolizar outros poderes além deles. Os deuses tampouco simbolizavam o que é ‘sobrenatural’, no sentido de serem uma espécie de cópia imaterial do material, um mundo de sombra que imita o mundo substancial de forma fantasmagórica (5)”.

Então, perdendo essa visão mitológica com o advento da filosofia, o homem torna-se, assim, a medida de todas as coisas, princípio de toda a análise e reflexão, não mais Deus. Mas as coisas não ficaram mais fáceis, pois, Quem é o homem? Com que critério podemos avalia-lo? Como saber que a moralidade humana possui uma base absoluta ou se é relativa a toda construção cultural, ficando a mercê daquilo que uma parcela do povo determina como princípio hierárquico de ações em prol de atingir o bem estar da maior quantidade de pessoas, quando não a todos?

Antes de tudo, vale conceituar moral e ética para, depois, abrangermos uma contextualização histórica e filosófica sobre.

Moral advém do latim mos ou mores, que significa costumes, no sentido de conjunto de normas adquiridas por hábito. Já a ética vem do termo grego ethos, que pode significar tanto caráter, modo de ser, quando tradições ou hábitos6.

Pelo que vemos dos conceitos, ao que tudo indica, não somos seres éticos ou morais, somos levados à praticar atos morais sancionados pela ética, para que sejamos vistos como seres humanos que possuem valores e agem em prol daquilo que rege o bem-estar social, determinado por tais padrões. Mas, se somos imorais, como propõe Eric Weil, como e em que podemos basear nossa construção ético-moral? A definição de Marcel Conche é muito pertinente nesse momento: “Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de outra religião ou da irreligião, e minha moral não passará de uma moral como as outras, uma moral particular. Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de uma outra filosofia ou da não-filosofia, e minha moral mão passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor. Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõe de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas não acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então, os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz, etc., estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro. Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades (7)”.

Seguindo essa descrição de Conche, seguimos com Weil (8). Este nos dirá que por necessitarmos de buscar um fundamento moral para validar nossas ações perante um grupo, eleva o fato de sermos imorais, ou seja, de não termos em nós esses valores, i. e., a moralidade não nos é intrínseca, mas, extrínseca. Em outras palavras, para que não sejamos nossos próprios juízes com relação aos atos morais, é necessário que este seja universal, seja absoluto, seja sem variação de interpretações. Tal designação não se torna possível se somos particulares, se somos individuais. No que tange a sociologia humana, somos seres relativos, guiados por relações interpessoais que nos fazem construir nossa própria biografia pelas experiências que adquirimos, diariamente, através de nosso convívio em sociedade. Então, algo que demande de mim, como relativo à sociedade, uma postura que seja absoluta, que seja correta, que seja moral, outros seres relativos não poderiam a estipular sob o fundamento já exposto; à nós, relativos, cabe procurar compreender do que se trata essa universalidade objetiva da moral e em como ela se aplica à nós, como sociedade, em forma de valores, hábitos ou costumes. Que é o que passaremos a abordar nesse instante.

 

“Os valores são vertentes da realidade ambíguas por natureza, carentes de contornos definidos e ao mesmo tempo transbordantes de dimensões, e por isso não se submetem facilmente a um estudo analítico preciso e rigoroso. […] De fato, é comum encontrarmos pensadores que, ao tratarem desse tema, utilizam modos expressivos mais apropriados, à primeira vista, ao campo da criação poética ou da literatura religiosa do que a uma investigação filosófica (9)”.

Como somos seres sencientes, é necessário que aquilo do qual apreendemos pelos sentidos possua um valor para nós. É assim que Roger Scruton (10) define a concepção de imagens familiares, como, por exemplo, pai, amigo, etc.; cada palavra que para nós possui um valor, um significado, é externo a nós e, por termos tido contato e consciência dela, passamos a nos utilizarmos do valor daquilo para nosso próprio usufruto. Então, quando pensamos em moral como valores dos quais, como dizia Kant (11), somos impelidos a seguir – dever-ser – é preciso que a própria moral seja algo que tenha um valor e que esse valor expresse uma significância para nós, individual e coletivamente.

Perceba que, mesmo que o valor do significado pai, amigo, etc., que nós inferimos às palavras que expressam tais realidades, não são as palavras que criamos para tais realidades que a fazem existir no plano real. Antes que houvesse uma palavra para pai, já existia na realidade esse ser gerador; antes mesmo que houvesse a palavra amigo, já existia uma relação interpessoal entre duas pessoas que gerava confiança e proximidade; assim também com a moral: antes que pudéssemos nomear a moral de moral, o valor de valor, tais condições comportamentais nos é exigida e existe como parâmetro a ser seguido.

“O valor se objetiva em cada realização concreta de si mesmo, mas não se objetiviza, não fica submetido às condições empíricas dos meros objetos (12)”. Então, mesmo que o sujeito humano possa praticar atos morais, pelo conhecimento e experiência dos valores, estes não se tornam parte do sujeito, não se submetem a este pelo ato. Por isso que uma conduta moral exige um comprometimento em observar esses valores e buscar aplicá-los em atos cotidianos, experimentando-os dia-a-dia, para que, com o tempo, eles, mesmo que extrínsecos ao sujeito, possam agregar o arcabouço dos hábitos que este submete a si mesmo como condição de comportamento social em relação ao grupo do qual está inserido.

Como já dito, o ser humano não é a base da moral, nem as estruturas sociais das quais ele pertence, porém, inerente ao ser humano, como aludido em Kant, há uma tendência do sujeito em buscar os valores morais que o tornam completos quando os pratica. Dessa forma, os valores morais universalmente objetivos demanda que haja um recipiente subjetivo que os capte pela essência do próprio valor, ou seja, o amor é, segundo Quintás, a base de toda a moralidade, porém, o ser humano não nasce com esse valor intrínseco a si. É preciso que este perceba a necessidade do amor na realidade do qual o amor precisa ser praticado.

Noutras palavras, uma criança só saberá o que é o amor por que ela receberá empatia, alento, cuidado, entre outras coisas que seus pais lha dará. Mas, perceba que esses atos por si não dizem para criança que existe algo chamado amor que as impulsiona, mas, quando ela passar a demonstrar isso em ato por outro sujeito, ela saberá que aquela experiência que ela está tendo e que lha motiva a praticar é a base valorativa daquilo que está fazendo, então o ato se expressa pela palavra e a palavra – amor – ganha valor.

“O valor pede para ser realizado. Trata-se de um dever-ser. Ao realizar o valor, o ser humano instaura sua realidade pessoal e comunitária. Aderindo ao valor, sente sua individualidade ser acrescida e assumida a uma trama de relações que lhe abrem diversas realidades transcendentes. Essa experiência lhe permite decifrar um fato tão ambíguo e de difícil precisão quanto pejado de consequências para a sua vida: o ser humano se vê ultrapassado e configurado pelos valores que, a cada momento, assume e realiza (13)”.

Comparato, assim como Quintás, alude ao fato de que o amor é a base dos valores morais. Porém, ele acrescenta outros dois aspectos: verdade e justiça. Esse tripé precisa ser a base de tudo. Dessa forma, quaisquer que sejam as atitudes corriqueiras que como sujeitos decidimos tomar, para serem morais, precisam estar de acordo com esses preceitos. Quintás diz que os valores são ao mesmo tempo um dom e um mérito. Todos somos receptáculos perfeitos para esse dom, porém, poucos são os que buscam merecer tal. Merecer não está relacionado aos comportamentos precedentes, mas a vontade de buscar experimentar e praticar tal dom.

Já pudemos ter uma breve noção da objetividade moral. Agora nos cabe uma pergunta fundamental: quem é que pode nos oferecer esse conhecimento moral? De onde vem esses valores intercambiáveis e infinitos?

Antes da resposta, uma breve digressão ao que vimos acima. Como disse, o sujeito moral não toma para si os valores objetivos, porém, lhe é requerido que se esforce para praticá-los continuamente. Sendo assim, só se pode inferir que tais fatores devem advir de um ser (14) que, mesmo concedendo-os aos sujeitos humanos, em nada ele fique prejudicado. É preciso que esse ser que possui esses valores os tenham sem medidas; melhor, é necessário que esse ser do qual emana tal tripé constituinte da moral, seja ele mesmo tais valores.

Como não há ser contingente que alcance tal predicado, é imprescindível que um ser necessário exista para preencher esse lugar do qual nada contingente pode. Com isso, nossa moral objetiva parte da metafísica, parte do que não é material, parte do que não é relativo. Girard afirma que toda a sociedade advém da religião, e, por conseguinte, toda religião tem sua gênese numa concepção do sagrado adquirida por uma revelação direta da entidade daquela religião para os seus profetas. E são esses preceitos que originaram-se nas religiões que até hoje a filosofia se presta a avaliar no que tange a moralidade.

Dessa forma, como conclusão dessa introdução a objetividade moral, podemos afirmar que a fonte da moral e dos valores que temos por mais alto padrão de comportamento, é o que popularmente chamamos de Deus.

Bibliografia

Ética. Direito, moral e religião no mundo moderno, Fábio Konder Comparato, Companhia das Letras, 3ª Edição, 2009.

Evolução e Conversão. Diálogos sobre a origem da cultura, René Girard, Pierpaolo Antonello, João Cezar de Castro Rocha, É Realizações, 1ª Edição, 2011.

Deus. Um guia para perplexo, Keith Ward. Editora Difel, 1ª Edição, 2009,

Filosofia moral, Eric Weil. É Realizações, 1ª Edição, 2011.

O paradoxo da moral. Vladimir Jankélévitch, Martins Fontes, 1ª Edição. 2008.

O conhecimento dos Valores. Introdução Metodológica, Alfonso Lopéz Quintás. É Realizações, 1ª Edição, 2016.

Deus: uma invenção? René Girard, André Gounelle, Alain Houziaux, É Realizações, 1ª Edição, 2011.

O fundamento da moral. Marcel Conche, Martins Fontes, 1ª Edição, 2006.

Ética, Educação e trabalho, Otávio José Weber, Intersaberes, 1ª Edição, 2013.

1 Período que remonta ao século XI a.C., de acordo com Toybee, citado por Fábio Konder Comparato, Ética, 3ª ed, 2016, ed. Companhia das Letras, São Paulo-SP, pg 38.
2 Ibidem, pg 38.
3 Ibidem, pg 40-41.
4 René Girard. Evolução e Conversão, 1ª Edição, 2011, Ed. É Realizações, São Paulo-SP, pg 142.
5 Keith Ward, Deus: Um guia para perplexos. Rio de Janeiro-RJ, 1ª Edição, 2009, editora DIFEL, pg 36.
6 Conceitos obtidos no livro de Otávio José Weber, Ética, Educação e Trabalho. Editora Intersaberes, 2013, 1ª edição, Curitiba-Pr. Pg 59-61.
7 Marcel Conche, O Fundamento da Moral. Editora Martins Fontes, 2006, 1ª Edição, São Paulo-SP, pg 5.
8 “Toda moral […] supõe que o homem, capaz de observar regras morais, é ao mesmo tempo imoral: ela reconhece a imoralidade do homem ao reconhecer que ele pode e deve ser conduzido à moral”. Eric Weil, Filosofia da Moral, É Realizações, 2011, 1 [ Edição, São Paulo-SP, pg 17.
9 Alfonso Lopéz Quintás, O Conhecimento dos Valores, É realizações, 2016, 1ª Edição, São Paulo-SP, pg 18.
10 Roger Scruton, Deus: uma invenção?, É Realizações, 2011, 1ª Edição, São Paulo-SP, pg 91.
11 Immanuel Kant, Metafísica dos costumes, Editora Vozes, 2013, 1ª Edição, São Paulo, SP, pg 13.
12 Alfonso Lopéz Quintás, obra citada, pg. 67
13 Ibidem, pg 122.
14 É preciso que os valores morais advenham de um ser, caso contrário, jamais poderíamos nos preocupar em seguir algo que não seja um absoluto real em um ser, ou seja, a objetividade moral é necessariamente ontológica e, para que tenha fundamentação objetiva em sujeitos reais, ela precisa advir de um ser também real, porém, potencialmente perfeito. Então, os valores partem de um Ser para outro ser.

Por Artur Scarpati Liuth, estudante de filosofia pela Uninter.

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