Novas considerações sobre o embate Evolucionismo vs. Criacionismo

a-criacao-de-adao-michelangeloNão me lembro de quando, exatamente, comecei a estudar e a interessar-me pela discussão entre evolucionistas e criacionistas. Lembro-me, apenas, de que foi no Ensino Médio e de que foi antes do terceiro ano do Ensino Médio, que foi quando aprendi formalmente sobre a Evolução — por sinal, tive um excelente curso: isso ficou nítido quando discutia sobre o tema com outras pessoas e quando via os absurdos nos diversos textos sobre a questão. Uma das minhas primeiras fontes de pesquisa, na época, foi o site do Marcus Valério — http://www.evo.bio.br/ —, lembrando que ele nada tem a ver com aquele do mensalão. Quanto mais eu estudava o assunto, mais via o equívoco por parte dos criacionistas. Acabei identificando-me como um “evolucionista teísta”, que é um termo que acredito que seja bastante problemático, assim como quase toda a terminologia envolvida no debate. Como “teísmo” é um termo muito abrangente, creio que o mais adequado seria falar de um “cristianismo evolucionista”. Enfim, percebendo, no início de 2011, que havia pouca literatura em Língua Portuguesa sobre o assunto que fosse séria, resolvi contactar outras pessoas cristãs que tivessem o pensamento semelhante ao meu para que fizéssemos um site que promovesse a discussão sobre o assunto de maneira honesta. Conheci algumas pessoas que se mostraram dispostas a colaborar com o meu projeto, mas ele acabou não saindo do papel por diversas razões que não vêm ao caso. Desde então, sempre tenho lido livros sobre o assunto e acompanhado a discussão — hoje, não o faço mais com tanto afinco. O que sempre noto é que as pessoas que costumam debater o assunto, via de regra, não sabem do que falam: desconhecem o funcionamento da metodologia científica, não sabem absolutamente nada sobre hermenêutica bíblica, sendo ignorantes sobre Teologia de modo geral, além de não terem a mínima idéia do que é o pensamento filosófico. Esses são os prerrequisitos que creio serem rudimentares para opinar sobre o tema. O meu objetivo com o texto de hoje é explicar por que considero o debate entre criacionistas e evolucionistas sem sentido, de modo que não digo mais hoje que sou um evolucionista teísta, como costumava fazer antes.

   Em primeiro lugar, tenho de tecer algumas considerações sobre a prática científica. O lógico e filósofo brasileiro Newton da Costa criou uma teoria da verdade chamada Teoria da Quase-Verdade — para uma boa introdução ao assunto, recomendo o seu texto intitulado O Conhecimento Científico. De modo simplificado e resumido, da Costa defende que a Ciência busca a quase-verdade e não a verdade. Grosso modo, existem dois tipos de inferências: dedutivas e indutivas. Naquelas, há um vínculo de nexo causal necessário entre premissas e conclusão, enquanto nestas há apenas um vínculo de possibilidade ou probabilidade. Exemplos de inferências dedutivas são demonstrações matemáticas. Quando provo um teorema, estou fazendo uma dedução. A Ciência, de modo geral, trabalha com induções. A título de exemplo, pensemos na Física — costumo utilizá-la por exemplo porque é uma área que estudei de modo mais aprofundado, com ela tendo, portanto, maior afinidade. Quando um físico afirma que a força gravitacional é inversamente proporcional ao quadrado da distância das massas em questão, significa que ele, por meio de alguns experimentos em algum laboratório, fez medições que o levaram a crer que as massas na natureza apresentam tal comportamento. O físico pressupõe que a natureza sempre se comportou dessa maneira e que ela sempre se comportará assim em qualquer lugar do universo — estou simplificando as coisas: de fato, há físicos hoje que buscam trabalhar com leis físicas que se modificam com o tempo. Quando, a partir de uma quantidade qualquer de repetições, o físico afirma que a natureza sempre apresentará um comportamento determinado a partir do seu experimento, ele está fazendo uma inferência indutiva, ou seja, pode ser o caso de, no futuro, a natureza apresentar um comportamento diferente daquele observado, enquanto uma demonstração matemática nunca será falsa em nenhuma circunstância, admitindo-se, obviamente, que se esteja no mesmo sistema no qual a demonstração foi efetuada. O que o cientista está buscando, portanto, é sempre se aproximar o máximo possível daquilo que ele observa.
   Façamos uso de um exemplo histórico. Newton construiu a sua mecânica. Einstein, posteriormente, construiu a sua mecânica relativística, que derrogava vários princípios clássicos, embora, em certas circunstâncias, a sua mecânica fosse reduzida à clássica; por exemplo, em casos de baixas velocidades. O mesmo caso deu-se com a mecânica quântica. Ora, não temos nenhuma garantia de que, no futuro, não tenhamos uma nova mecânica que descreva melhor o mundo, dando explicações mais satisfatórias, assim como não podemos garantir que esta nova mecânica, por sua vez, não seja substituída por outra. Buscando modelar essa prática corrente da ciência, o Newton da Costa criou o conceito de quase-verdade, uma vez que a ciência sempre está em busca de aperfeiçoamentos e não de teorias definitivas, no sentido de que uma teoria definitiva deveria ser irrefutável. A própria possibilidade de que a teoria possa ser refutada para poder ser tida por científica — lembremo-nos da falseabilidade de Popper — já dá indícios de que, como diria da Costa, uma teoria científica é formulada para ser superada.
   Ora, por que nunca vi um cristão dizer-se ser um relativista teísta, um quântico teísta ou dizer-se ser um X teísta, sendo X qualquer teoria científica? Na verdade, já conheço a resposta. Os ateus apropriaram-se do Evolucionismo, atrelando-o ao naturalismo, para defender a sua causa e acabaram fomentando uma aversão ao Evolucionismo por parte de certos cristãos. O filósofo Alvin Plantinga, num livro recente chamado Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, and Naturalism, mostra claramente que a Evolução não implica um naturalismo. Tive a oportunidade de ouvi-lo em 2011 no IV Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião. Voltando à questão da terminologia, o próprio termo “criacionismo” é péssimo para ser contraposto ao termo “evolucionismo”: o uso dessas palavras leva, muitas vezes, à mais completa confusão. Perdi a conta do número de vezes que tive de explicar que cria na Evolução, mas que cria, também, que Deus criou o mundo. Outra confusão corrente refere-se ao entendimento sobre o que é uma teoria científica — recentemente, na polêmica entrevista do Silas Malafaia à Marília Gabriela, o Malafaia mostrou que a confusão sobre o assunto continua onipresente nas discussões. Temos vários conceitos na ciência: hipótese, lei, modelo, entre outros. Uma teoria é um conjunto de proposições articuladas que explicam por que um dado fenômeno em estudo ocorre da maneira descrita pela lei. Teorias científicas devem permitir previsões sobre experimentos futuros que possam modificá-las — aqui, temos, novamente, a falseabilidade em jogo. Resumidamente, uma teoria científica deve ser capaz de fornecer explicações sobre certos eventos, conferindo previsões que, se falharem, irão falsificá-la. As pessoas confundem o conceito de teoria científica com o conceito de teorema matemático. Creio que isso ocorre porque, coloquialmente, usamos o termo “teoria” para falar de uma simples conjectura sobre algo, mas o uso que se faz na Ciência não é esse.
   Entendo que o embate entre criacionistas e evolucionistas não tem sentido porque, se uma teoria científica é um arcabouço teórico que busca aproximar-se o máximo possível da realidade —  para ser preciso, um cientista poderia não ter essa concepção: ele poderia ser um instrumentalista com relação à Ciência, crendo que ela é apenas um instrumento para melhorar a condição da vida humana ou mesmo dar explicações satisfatórias, mesmo que não se relacionem diretamente com a realidade, tendo algum tipo de correspondência com ela, mas não é preciso complicar a nossa vida introduzindo aqui detalhes sobre a discussão entre realistas e antirrealistas —, não há por que fazer um escarcéu se uma teoria científica, momentaneamente, apresenta algo no seu escopo que vá de encontro às suas crenças religiosas. Vejam bem, eu creio que, na verdade, nada na Teoria da Evolução vai de encontro, de fato, ao Cristianismo — há uma vasta literatura sobre o assunto que visa a mostrar exatamente isso —  , mas não preciso comprometer-me com essa tese para defender o que pretendo mostrar neste texto de hoje. Nós, cristãos, cremos que Cristo é a verdade e cremos que a verdade é uma só. Tomás de Aquino dizia que fé e razão não podem contradizer-se. Ora, se os cientistas estão buscando, sinceramente, a verdade e se cremos que a verdade é uma só, uma hora ou outra, eles chegarão à verdade e àquilo que cremos que é verdadeiro. É apenas uma questão de tempo. Não há razão, portanto, para um cristão leigo intrometer-se no trabalho de um cientista, dizendo que determinada tese de sua teoria está errada. Deixe o cientista fazer o seu trabalho e ele aproximar-se-á da verdade, uma vez que a própria metodologia científica busca essa aproximação.
   Não faz sentido, portanto, eu dizer que sou um evolucionista teísta se eu tenho a compreensão de que as teorias científicas não são teoremas e que serão, oportunamente, aperfeiçoadas, tendo teses derrogadas com o tempo. Obviamente, por exemplo, se eu sou um cientista que trabalha com a Teoria Quântica de Laços, em detrimento da Teoria das Cordas, faz sentido eu dizer que sou um teórico daquela teoria, mas apenas no sentido de que, temporariamente, defendo que uma dada teoria fornece explicações melhores que outra teoria. Aqui, convém voltarmos ao exemplo que mencionei das mecânicas clássica, relativística e  quântica. Uma teoria científica que rivaliza com outra deve satisfazer algumas coisas, a saber, ela deve ter o mesmo poder explicativo, a fim de fornecer explicações para os mesmos fenômenos que a outra teoria é capaz de explicar, ela deve conferir explicações para fenômenos que a outra teoria não é capaz de fornecer e, além do mais, deve predizer fenômenos que possam ser verificados. Nesse sentido, não vejo o criacionismo — estou usando o termo de maneira abrangente: tem-se o criacionismo científico, o Design Inteligente, entre outras vertentes — como uma teoria que seja rival ao Evolucionismo.
   Desde muito cedo, percebi que, na verdade, o embate entre criacionistas e evolucionistas não é uma disputa de teorias científicas, mas uma disputa interpretativa, assim como praticamente todas as disputas religiosas — um exemplo claro, é o embate entre arminianos e calvinistas. Os criacionistas insistirão numa leitura literalista das Escrituras, enquanto os evolucionistas terão outro entendimento das passagens que os criacionistas usarão para rejeitar o Evolucionismo. Como lógico, tenho muito interesse pela Linguagem e esse é um dos assuntos que mais estudo em suas diversas manifestações: a Lógica, a Gramática e a Hermenêutica. Tenho chegado à conclusão de que os princípios que nortearão a leitura de um texto sempre serão escolhidos de maneira arbitrária. A partir daí, entendo que a Tradição deve ser valorizada: é ela que indicará quais são os princípios que devemos utilizar na nossa leitura. Desafio os criacionistas a revisarem os grandes intérpretes das Escrituras na história da Igreja e mostrarem quantos tiveram o entendimento que eles têm de Gênesis. De fato, a própria Igreja Católica, que valoriza bastante a Tradição, não vê problemas com a Teoria da Evolução.
   Creio que a Bíblia nada tem a dizer sobre a Ciência. Nela, vemos claramente a sua serventia: “Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra.” [2 Timóteo 3:16-17 — Almeida Corrigida e Revisada Fiel]. Essas são as funções da Bíblia!
   A minha conclusão, resumidamente, é a de que não faz sentido eu dizer que sou um evolucionista teísta na mesma medida em que não há sentido nenhum em dizer que sou um relativista teísta. Não há sentido, também, porque teorias são feitas para serem substituídas e superadas. Se digo que sou um evolucionista, sem querer alegar um posicionamento tendo em vista teorias rivais, apenas querendo dizer que creio num discurso científico como definitivo, estou negligenciando a própria prática científica, que se baseia na sua capacidade de revisão a fim de aproximar-se sempre da verdade, por meio da busca da quase-verdade. A única possibilidade de embate possível entre um criacionista e um evolucionista é que aquele mostre que está apresentando uma teoria científica que forneça a mesma abrangência de explicações que o Evolucionismo, que tenha a capacidade de explicar fenômenos que a Teoria da Evolução não explica e que, também, forneça predições que possam ser constatadas empiricamente. Posso estar enganado, mas nunca vi um criacionista mostrando isso. A questão fica limitada a meras críticas, mas ninguém em sã consciência irá defender que a Evolução é uma teoria acabada. Qualquer teoria científica terá defeitos por conta da sua própria natureza; entretanto, teorias científicas devem ser atacadas por estarem falhando na explicação de fenômenos que visavam a explicar e não porque elas, aparentemente, entram em conflito com minhas crenças religiosas. Mesmo que uma teoria científica, num dado momento, claramente, apresente teses contrárias à minha fé, se creio que esta é verdadeira, e que o cientista buscará aproximar-se da verdade, será apenas uma questão de tempo que o cientista abandone a sua tese e aproxime-se daquilo que creio ser verdadeiro, não sendo necessário nenhum tipo de interferência no seu trabalho.

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.