Deus, Ciência e a Bíblia: Exegese Contra Leituras Modernas | Fuz Rana & Steve Anonson
A Bíblia ensina uma cosmologia de três andares? Fuz Rana (bioquímico) e Steve Anonson (apologista cristão) refutam essa ideia por meio de exegese cuidadosa. Descubra como interpretar corretamente a Escritura diante da ciência moderna. Palavras-chave: Bíblia, ciência, cosmologia, exegese, concordismo, apologética cristã.
Introdução: Ciência e Fé – Um Diálogo Necessário
A interação entre ciência e fé cristã é um campo complexo e muitas vezes mal compreendido. Muitos buscam forçar uma concordância imediata entre descobertas científicas recentes e passagens bíblicas, enquanto outros vão ao extremo oposto, afirmando que a Bíblia reflete apenas mitos antigos, desprovidos de verdades científicas ou históricas. Neste artigo, exploramos uma discussão crucial entre Fuz Rana, bioquímico e apólogo cristão da organização Reasons to Believe (RTB), e Steve Anonson, também apologista cristão, sobre como evitar a armadilha de “ler ciência na Bíblia” – seja moderna ou antiga.
O foco central é a importância de uma exegese sólida – o processo de extrair o significado original pretendido pelo autor sob a inspiração do Espírito Santo – antes de qualquer tentativa de harmonização com a ciência. A conversa gira em torno de uma crítica comum à visão concordista (defendida pelo RTB): a alegação de que a Bíblia ensina uma cosmologia de três andares (ou “three-tier cosmology”), típica do Oriente Médio Antigo.
Os Extremos: Concordismo vs. Mitologismo
O diálogo apresenta dois extremos principais:
- Concordismo (RTB): Afirma que, embora a Bíblia não seja um livro de ciência, ela contém conceitos que, inspirados pelo Espírito Santo, antecipam descobertas científicas modernas. A Bíblia pode ter conteúdo científico relevante, mesmo escrito em uma época pré-científica.
- Mitologismo/Contextualismo Radical: Sustenta que os relatos bíblicos da criação (como Gênesis 1) são meras adaptações da cosmologia do Oriente Médio Antigo. Nessa visão, a Bíblia transmite verdades teológicas, mas não necessariamente científicas ou históricas. Deus usou a linguagem e a compreensão cosmológica da época para se comunicar verdades espirituais.
Refutando a “Cosmologia de Três Andares”
O cerne do debate é a alegação de que a Bíblia apoia a visão antiga de um universo dividido em três níveis: céus acima (com firmamento e estrelas “grudadas”), terra no meio, e submundo (Sheol/Hades) abaixo. Steve Anonson dedica-se a refutar essa ideia com base em uma análise textual cuidadosa de várias passagens frequentemente citadas como prova.
Análise de Passagens Específicas:
- Filipenses 2:10: A frase “no céu, na terra e debaixo da terra” é parte de um poema (hino de Cristo) que enfatiza a soberania universal de Jesus. Trata-se de um merismus (figura literária que usa extremos para significar o todo) ou paralelismo poético, reforçando a ideia de “toda joelha se dobre” e “toda língua confesse”. Não implica uma estrutura física do cosmos.
- Apocalipse 5:3 & 4: A expressão similar “no céu, na terra e debaixo da terra” aparece em um texto apocalíptico, altamente simbólico. Novamente, o contexto aponta para totalidade e universalidade, não para uma descrição literal da estrutura do universo.
- Daniel 4:10-11 & 20-22: A árvore que cresce “até o céu” e é visível “até os confins da terra” está no contexto de um sonho com interpretação simbólica. A árvore representa o rei Nabucodonosor, e sua grandeza se estende “aos confins da terra” – mais uma vez, uma figura de linguagem (synecdoche ou merismus) significando o mundo inteiro ou suas partes mais distantes.
- Isaías 41:8-10: A frase “peguei-te desde os confins da terra” refere-se a Abraão, que veio fisicamente de Ur dos Caldeus. Os ouvintes entendiam que “confins da terra” era uma figura de linguagem, não uma descrição literal de uma terra plana com bordas.
- Jó 38:4-6: Este é um poema rico em metáforas da construção. “Fundamentos”, “medidas”, “pedras angulares” são imagens usadas para ilustrar o poder criador de Deus, não afirmações físicas sobre a estrutura da terra.
- Salmos 104:2-6: Este salmo é uma ode poética à criação, repleta de imagens: Deus “se veste de luz como de um manto”, “estende os céus como uma tenda”, “põe vigas nos seus aposentos superiores”. A frase “firmou a terra sobre os seus fundamentos” está inserida nesse rico tecido de metáforas, não como uma afirmação geológica.
- Deuteronômio 26:15 & 2 Crônicas 6:18-21: O “santo lugar, tua habitação nos céus” não significa que Deus fisicamente habita um local específico no espaço. O contexto do discurso de Salomão enfatiza a onisciência e onipresença de Deus (“os céus e até os céus dos céus não te podem conter”) e usa a linguagem de oração (“ouve dos céus”) como uma poderosa imagem, não uma localização física.
- Mateus 24:29 & Apocalipse 6:13: As imagens apocalípticas das “estrelas caindo do céu” são altamente simbólicas, típicas do gênero apocalíptico, e não descrições literais de uma estrutura física celeste com estrelas coladas. Estão ligadas a eventos escatológicos e transmitem a ideia de perturbação cósmica e juízo divino.
- Isaías 40:22: “Ele se assenta sobre o círculo da terra” não necessariamente implica uma visão de terra plana. No contexto poético, “círculo” pode sugerir a totalidade ou a esfericidade da terra (conhecimento possível na antiguidade) e serve para enfatizar a soberania de Deus sobre toda a criação, contrastando com os príncipes humanos frágeis.
- 1 Crônicas 16:30 & Salmos 93:1: “O mundo está firmado, não se abalará” é uma metáfora que destaca a estabilidade e fidelidade de Deus, Seus propósitos e ordenamentos, não uma afirmação física sobre a imobilidade da terra no espaço.
Conclusão: Linguagem Figurativa e Verdades Profundas
Steve Anonson conclui que praticamente todas as passagens frequentemente usadas para sustentar a ideia de uma cosmologia de três andares, quando analisadas em seu contexto original (gênero, estilo literário, figuras de linguagem), se revelam linguagem figurativa – poética, simbólica, idiomaticamente correta – usada para transmitir verdades teológicas profundas sobre a soberania, poder, criatividade e transcendência de Deus.
A tentativa de extrair uma cosmologia física literal dessas passagens não só falha na exegese, como também pode “ler más ciências” na Escritura, atribuindo aos autores bíblicos concepções físicas que eles não tinham e não pretendiam ensinar.
A Cosmologia Bíblica Verdadeira: Surpreendentemente Moderna
Fuz Rana destaca que a visão cosmológica apresentada na Bíblia, especialmente em Gênesis 1, é radicalmente diferente das cosmologias politeístas e animistas do Oriente Médio Antigo. Ele aponta para conceitos bíblicos que ecoam descobertas científicas modernas:
- Começo do Universo: A ideia de um início (Gênesis 1:1) alinha-se com o modelo do Big Bang.
- Começo do Tempo: A criação dos “céus e da terra” inclui o início do próprio tempo e espaço.
- Constância das Leis da Natureza: Passagens como Jeremias 33:25 sugerem a confiabilidade e constância da ordem natural, base para a investigação científica.
Essa não é uma questão de “ler ciência moderna na Bíblia”, mas de reconhecer que os princípios cosmológicos bíblicos, embora expressos em linguagem acessível à época, são notavelmente compatíveis com o que a ciência descobriu. Isso, segundo Rana, ajudou a lançar os fundamentos para o desenvolvimento da ciência no Ocidente.
O Caminho Adiante: Exegese Sólida e Humilde
A conversa entre Rana e Anonson reforça a importância de:
- Fazer Exegese Série: Entender o contexto histórico, literário e linguístico original da Escritura.
- Reconhecer Gêneros Literários: Distinguir entre narrativa histórica, poesia, sabedoria e apocalipse.
- Identificar Figuras de Linguagem: Compreender o uso de metáforas, paralelismos, merismos e outras técnicas literárias.
- Evitar Leituras Anacrônicas: Não impor concepções modernas (científicas ou culturais) ao texto antigo, nem assumir que os autores antigos compartilhavam das mesmas visões cosmológicas pagãs de seu tempo.
Ao seguir esses princípios, podemos apreciar a profundidade teológica da Escritura sem comprometer sua integridade com interpretações inadequadas, fortalecendo assim a fé cristã diante dos desafios e descobertas da ciência moderna. A Bíblia não é um livro de ciência, mas sua visão do mundo, quando corretamente compreendida, é profundamente coerente com a realidade que a ciência busca desvendar.
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