Crítica de “Deus, a Liberdade e o Mal”, de Alvin Plantinga

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Deus, a Liberdade e o Mal, de Alvin Plantinga
Tradução de Desidério Murcho
São Paulo: Edições Vida Nova, 2012, 144 pp.
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Introdução

Alvin Plantinga

Universidade de Notre Dame

Este livro discute e exemplifica a filosofia da religião, ou seja, a reflexão filosófica sobre temas centrais da religião. A reflexão filosófica sobre estes temas (que não difere muito do simples pensamento árduo) tem uma história longa: remonta pelo menos ao séc. V a.C., quando alguns gregos pensaram longa e arduamente sobre a religião que haviam recebido dos seus antecessores. Na era cristã, essa reflexão filosófica começa no primeiro ou segundo século com os primeiros padres da igreja, ou a “Patrística”, como se lhes chama muitas vezes; e tem continuado desde então.

O coração de muitas das grandes religiões — cristianismo, judaísmo, islamismo, por exemplo — é a crença em Deus. Claro que estas religiões — religiões teístas — diferem entre si quanto ao modo de conceber Deus. A tradição cristã, por exemplo, dá ênfase ao amor e benevolência de Deus; na perspectiva islâmica, por outro lado, Deus tem um caráter algo mais arbitrário. Entre os teólogos alegadamente cristãos também há ultrassofisticados que proclamam libertar o cristianismo da crença em Deus, procurando substituí-la pela confiança no “Ser em si” ou no “Fundamento do Ser” ou algo assim. Mas continua a ser em grande parte verdadeiro que a crença em Deus é o fundamento destas grandes religiões.

Ora, a crença em Deus não é o mesmo que acreditar que Deus existe, ou que há algo como Deus. Acreditar que Deus existe é aceitar simplesmente uma proposição de um dado gênero — uma proposição que afirma que há um ser pessoal que, digamos, sempre existiu desde a eternidade, é todo-poderoso, perfeitamente sábio, perfeitamente justo, criou o mundo, e ama as suas criaturas. Acreditar em Deus, contudo, é outra questão muito diferente. O Credo do Apóstolo começa assim: “Acredito em Deus-Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra…”. Quem repete estas palavras e leva a sério o que dizem não está apenas a anunciar o fato de aceitar que uma dada proposição é verdadeira; está muito mais em jogo do que isso. A crença em Deus significa confiar em Deus, aceitá-Lo, entregar-Lhe a nossa vida. Para o crente, o mundo inteiro parece diferente. Céu azul, florestas verdejantes, imensas montanhas, oceano ondulante, amigos e família, o amor nas suas muitas formas e várias manifestações — o crente vê estas coisas como dádivas de Deus. O universo inteiro assume para ele um aspecto pessoal; a verdade fundamental sobre a realidade é a verdade sobre uma Pessoa. Assim, acreditar em Deus é mais do que aceitar a proposição de que Deus existe. Mesmo assim, inclui pelo menos isso. Não faz muito sentido acreditar em Deus e agradecer-Lhe pelas montanhas sem acreditar que há tal pessoa a quem agradecer, e que Ele é de algum modo responsável pelas montanhas. Nem podemos confiar em Deus e entregar-nos a ele sem crer que Ele existe: “é necessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e recompensa os que o buscam” (Heb. 11 6).

Um aspecto importante da filosofia da religião diz respeito a esta última crença — a crença de que Deus existe, de que há realmente um ser do gênero que os teístas afirmam venerar e confiar. Esta crença, contudo, não foi universalmente aceite. Muitos a rejeitaram; alguns afirmaram que é claramente falsa e que é irracional aceitá-la. Em resposta, alguns teólogos e filósofos teístas tentaram apresentar argumentos bem-sucedidos ou provas a favor da existência de Deus. A esta atividade chama-se teologia natural. O teólogo natural não oferece os seus argumentos, tipicamente, para convencer as pessoas da existência de Deus; e, na verdade, poucos dos que aceitam a crença teísta o fazem por os considerarem irresistíveis. Ao invés, a função típica da teologia natural tem sido mostrar que a crença religiosa é racionalmente aceitável. Outros filósofos, é claro, apresentaram argumentos a favor da falsidade das crenças religiosas; estes concluem que a crença em Deus é demonstravelmente irracional ou irrazoável. Podemos chamar ateologia natural a esta atividade.

Assim, há uma área da filosofia da religião que investiga a aceitabilidade racional da crença teísta. Trata-se de examinar os argumentos da teologia natural e da ateologia natural. Perguntamos se quaisquer desses argumentos são bem-sucedidos e se qualquer deles fornece provas ou indícios a favor da sua conclusão. Claro que este tópico não é o único em filosofia da religião, mas é importante e é nele que este livro irá concentrar-se.

Claro que este tópico — a racionalidade da crença religiosa — não se restringe à filosofia ou aos filósofos. Desempenha um papel proeminente na literatura — no Paraíso Perdido, de Milton, por exemplo, assim como em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, e em alguns romances de Thomas Hardy. Este mesmo tema encontra-se nas obras de muitos autores mais recentes — por exemplo, Gerard Manley Hopkins, T. S. Eliot, Peter De Vries, e, talvez, John Updike. E talvez seja difícil, se não impossível, fornecer uma definição proveitosa do modo filosófico de abordar este tema, em contraste com o modo literário de fazê-lo. Mas isso é desnecessário. Uma maneira muito melhor de ter uma ideia da abordagem filosófica é examinar algumas amostras representativas. Este livro é uma dessas amostras. Ao discutir temas de teologia natural e de ateologia natural não adoptarei uma pose de requintada imparcialidade; ao invés, irei comentar em pormenor alguns dos pontos principais e esmiuçar o que me parece ser a verdade da questão. Mas não tentarei dizer algo sobre todos os argumentos importantes ou sobre todos os tópicos que emergem em conexão com os que efetivamente discuto; fazê-lo seria dizer pouquíssimo sobre qualquer deles. Em vez disso, concentrarei os meus comentários em apenas dois dos argumentos tradicionais: o argumento ontológico, como exemplo da teologia natural, e o problema do mal, como o mais importante representante da ateologia natural. (O que tenho a dizer quanto a alguns dos tópicos e argumentos remanescentes encontra-se em God and Other Minds [Ithaca, NY: Cornell University Press, 1967].) Creio que algumas ideias perspicazes que surgiram recentemente na filosofia da lógica — em particular as que se centram na ideia de mundos possíveis — iluminam genuinamente estes tópicos clássicos; uma característica moderadamente inovadora deste livro, portanto, é a minha tentativa de mostrar como estas ideias perspicazes lançam luz sobre estes tópicos. Grande parte do material desenvolvido aqui encontra-se, numa forma mais rigorosa e completa, no meu livro The Nature of Necessity (Oxford: The Clarendon Press, 1974).

Tentei exprimir o que tenho a dizer de um modo que seja filosoficamente preciso e responsável; mas tentei em especial exprimi-lo tão clara e simplesmente quanto o tema o permite. Estes grandes tópicos são do interesse de muitas pessoas e a muitas dizem respeito — não sendo apenas do interesse de filósofos e teólogos profissionais. Assim, espero que este livro seja proveitoso para o neófito filosófico e para o lendário leitor comum. Tudo o que exigirá, espero, é uma determinação para seguir a argumentação e uma vontade de pensar arduamente sobre os seus vários passos.

Alvin Plantinga

Alvin Plantinga

Sobre o autor

Alvin Plantinga nasceu em 1932 e é hoje um dos mais destacados filósofos da religião, tendo contribuido para renovar a filosofia desta área. Autor de inúmeros livros e artigos, a sua reflexão filosófica incide não apenas sobre a filosofia da religião, mas também sobre a metafísica e a teoria do conhecimento. Na área da metafísica, da modalidade destacou-se por oferecer um dos primeiros tratamentos alargados dos conceito de necessidade e mundos possíveis, no livro The Nature of Necessity (1974) — isto numa altura em que não só poucos filósofos dominavam os aspectos elementares da lógica modal, crucial para acompanhar o raciocínio e a teorização nesta área, como as resistências de Quine (segundo as quais os conceitos modais seriam incoerentes) eram ainda levadas muito a sério. O livro Deus, a Liberdade e o Mal (originalmente publicado no mesmo ano) foi responsável por mudar o debate sobre o problema do mal: até então, o debate centrava-se na suposta incompatibilidade lógica entre a existência da divindade teísta e a existência de mal; Plantinga defendeu com tal vigor a ideia de que nenhuma inconsistência havia, que o debate passou desde então a centrar-se na ideia de que a existência de mal não é logicamente incompatível com a divindade teísta, mas que constitui um forte indício contra a probabilidade da sua existência. Na antologia Faith and Rationality (1983), por si co-organizada, está já presente o trabalho que o ocuparia nas próximas décadas: a ideia de que é epistemicamente legítimo ou racionalmente aceitável acreditar na divindade teísta sem provas. Este tema reapareceu nos seus três livros seguintes: Warrant: The Current Debate (1993), Warrant and Proper Function (1993) e Warranted Christian Belief (2000). Rigoroso, sofisticado, por vezes humorístico, Plantinga é um dos filósofos de hoje que exibe o melhor da filosofia contemporânea. Desconhecer o seu pensamento é hoje sinal de uma desatenção incompatível com um interesse genuíno pela filosofia.

Índice

Introdução

Parte I. ATEOLOGIA NATURAL

a. O problema do mal

1. A pergunta: por que Deus permite o mal?
2. O teísta contradiz-se?
3. Podemos mostrar que não há aqui inconsistência?
4. A defesa do livre-arbítrio
5. Tinha Deus poder para criar qualquer mundo possível que lhe aprouvesse?
6. Poderia Deus ter criado um mundo com bem moral, mas sem mal moral?
7. Depravação transmundial e essência
8. A defesa do livre-arbítrio vindicada
9. É a existência de Deus compatível com a quantidade de mal moral que há no mundo?
10. É a existência de Deus compatível com o mal natural?
11. A existência de mal torna improvável que Deus exista?

b. Outros argumentos ateológicos

Parte II. TEOLOGIA NATURAL

a. O argumento cosmológico
b. O argumento teleológico
c. O argumento ontológico 1. A objeção de Gaunilo
2. A resposta de Anselmo
3. A objeção de Kant
4. A irrelevância da objeção de Kant
5. O argumento reformulado
6. A sua deficiência fatal
7. Uma versão modal do argumento
8. Uma nota discordante
9. O argumento reformulado
10. O argumento triunfante

Fonte: http://criticanarede.com/plantingamal.html

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