O que é verdade, conhecimento, razão e fé

fe e razãoNo popular filme de natal Miracle on Thirty-Fourth Street [Milagre na Rua 34], a pequena Suzie Walker, interpretada por Natalie Wood, fica perplexa ao ver a reação das pessoas ao seu redor em relação ao enigmático Papai Noel que entrara em suas vidas re­centemente. Sua mãe, Doris, interpretada por Maureen O’Hara, tenta explicar à filha a necessidade de ter fé no bom velhinho. Frustrada, a pequena Suzie exclama: “Mas isso não faz sentido, mamãe”. Ao que sua mãe responde: “Fé é acreditar em algo mesmo quando o bom senso nos diz que não”.

Infelizmente, muitas pessoas acreditam que a fé é exatamente isso: aceitar algo contra todas as evidências. No entanto, é realmente melhor crer em algo apesar do que nosso juízo nos diz? Em nossa cultura atual, e ao longo de toda a história da Igreja, tem havido muitas maneiras de compreender a natureza da fé e seu relacionamento com a razão. O que almejamos fazer neste ensaio é observar as várias abordagens à questão que envolvem fé e razão, defender uma visão que acreditamos ser bíblica e fazer justiça ao que somos como criaturas de Deus.

Antes de nos lançarmos ao assunto, é necessário definirmos alguns poucos termos. Note que o título deste ensaio é: “Conhecendo a veracidade do cristianismo: A relação entre fé e razão”. Esse título sugere algumas noções que precisam ser examinadas: verdade, conhecimento, fé e razão. O que queremos dizer com a utilização de tais termos?

O QUE É A VERDADE?
O que expressamos, como cristãos, quando dizemos que nossa fé é verdadeira? Essa parece ser uma pergunta desnecessária se a fizer­mos em relação à maioria das coisas. Se uma pessoa afirmasse: “Está chovendo”, e outra pessoa respondesse: “É verdade”, a maioria de nós saberia exatamente o que está sendo dito a respeito da chuva. Contudo, por alguma razão, quando se relaciona a assuntos como religião, o significado de termos como “verdade” torna-se confuso.

Se os não-crentes não compreendem o que dizemos quando afir­mamos que o cristianismo é verdadeiro, tal confusão pode dificultar nossa capacidade de comunicar, de maneira efetiva, os ensinamentos de Cristo. O que eles precisam entender é que quando nós, como cristãos, sustentamos que o cristianismo é verdadeiro, não expressamos mera­mente que isso preenche certa função em nossa vida. Nossa afirmação é que a religião é mais do que uma atividade para alcançar paz de mente, um propósito de vida e felicidade. Certamente, obtemos tudo isso, mas há algo mais. Nós cremos que a verdadeira religião deve estar arraigada à realidade, que ela deve fazer afirmações verdadeiras sobre a realidade – quem somos como seres humanos, quem é Deus e como nos relacionamos com Ele. A religião que não pode verdadeiramente responder a essas questões é falsa, não porque falha em propiciar paz de mente a alguém, mas porque faz afirmações falsas sobre as coisas.

O QUE É O CONHECIMENTO?
Há dois versos familiares de dois famosos cânticos cristãos que talvez ajudem a ilustrar as duas diferentes maneiras pelas quais nossa sociedade compreende como conhecer algo: “Jesus me ama, isso eu sei, porque a Bíblia assim me diz”, e: “Você me pergunta como eu sei que Ele vive; Ele vive em meu coração”. Algumas vezes, esses dois tipos de conhecimento são mencionados como objetivo (público, externo, palpável) e subjetivo (privado, interno e pessoal), respectivamente. Até onde vemos, não há nada de errado em pensar dessas duas formas. Afinal, certamente algumas coisas são de conhecimento público, tais como a distância entre a Terra e o Sol ou quem é o atual presidente dos Estados Unidos. Igualmente certo é que existem algumas coisas que são de conhecimento privado, tais como se estou com dor de cabeça ou se estou me sentindo confortável.

Talvez esses exemplos não sejam controversos. Controverso é quan­do alguém insiste que certos assuntos são necessariamente restritos a uma área de conhecimento ou outra. Por exemplo, a noção popular é que a ciência lida com o que é objetivo, público, externo e plausível, enquanto a religião lida com o subjetivo, privado, interno e pesso­al. Agora, embora certos aspectos da religião possam ser subjetivos, particulares, internos e pessoais, nossa argumentação é que há impor­tantes aspectos do cristianismo que são objetivos, públicos, externos e plausíveis. O cristianismo é uma cosmovisão que faz afirmações sobre a realidade. Tais afirmações são verdadeiras ou falsas. Se forem verdadeiras, há evidência que pode sustentá-las. Na seção anterior, nós descobrimos que a afirmação de que o cristianismo é verdadeiro significa dizer que as afirmações do cristianismo correspondem à re­alidade. Do mesmo modo, conhecer que o cristianismo é verdadeiro deve significar mais do que conhecimento de um modo subjetivo, privado, interior e pessoal. Isso significa que nós podemos saber que ele é verdadeiro de uma forma objetiva, pública, externa e plausível.

O QUE É A RAZÃO?
Para compreender o que queremos dizer quando falamos sobre razão, consideraremos a razão de duas formas, em termos de atos e objetos da razão.

Atos da razão: Esta expressão indica todos aqueles atos, subjetivos e objetivos, de nossa mente, mediante os quais descobrimos, compre­endemos ou buscamos demonstrar a verdade. As designações clássicas para esses atos da razão são simples compreensão, julgamento e racio­cínio. Embora estejamos considerando-os como atos separados, talvez nunca os vivenciaremos como atos distintos da mente. Normalmente, eles ocorrem de maneira quase simultânea e automática. Não devemos confundir a análise da razão com a experiência da razão.

A simples compreensão é o ato da razão pelo qual a mente armaze­na algo. Esse ato torna algo presente em nossa mente. Entretanto, no ato da simples compreensão, a mente não está incumbida de afirmar ou negar algo. Simplesmente, mantemos em nossa mente como é a compreensão. A compreensão pode ser extremamente vaga e geral. Podemos compreender que algo é uma substância. O conhecimento completo sobre algo envolverá estudo e experiência, e é possível que jamais compreendamos totalmente algo que apreendemos. Como o primeiro ato da razão, a simples apreensão é reter na mente o signifi­cado de algo.

Julgamento, o segundo ato da razão, é o ato por meio do qual afirmamos ou negamos que o que foi apreendido é, foi ou será. Isso pode ser uma simples afirmação ou negação, ou ainda pode estar de acordo com algum modo de necessidade ou possibilidade. O ato do julgamento também pode envolver rejeição, na qual negamos que uma coisa foi ou é, e assim por diante. Esse segundo ato difere da simples apreensão, pois envolve conhecimento sobre o que foi apreendido, em termos de afirmação ou negação de sua existência.

O terceiro ato da razão, o raciocínio, é o ato mediante o qual a mente passa de uma verdade conhecida para uma nova verdade. Essa nova verdade será distinta da verdade conhecida anteriormente, mas a última está subentendida na anterior. Entretanto, o raciocínio não envolve unicamente movimento lógico, da premissa à conclusão. Pode também envolver um movimento da pergunta à resposta. Por exemplo, alguém pode inquirir um colega de confiança sobre os negócios de Estado de um país estrangeiro. Com base na veracidade da honestidade da outra pessoa, podemos adquirir novo conhecimento, indo da pergunta para a resposta. Ainda, o raciocínio pode ser uma passagem da retórica para a persuasão. Podemos, com base na autoridade do testemunho e na apresentação persuasiva da evidência, passar do conhecimento da existência de partículas e ondas à aceitação de um novo conhecimento sobre a natureza da luz. Qualquer progresso da mente a partir do conhecimento possuído até o conhecimento ganho é um ato de raciocínio, e esse ato pode envolver mais do que estritamente razões lógicas das premissas às conclusões.

Objetos da razão. Os objetos da razão são tudo o que a mente conhece por meio da razão. Eles correspondem aos três atos da razão. Qualquer objeto da razão pode ser apreendido, compreendido como ser ou não ser, e demonstrado, sem quaisquer suposições baseadas na fé em uma revelação divina, como verdadeiro ou falso. Peter Kreeft e Ronald K. Tacelli elaboraram um quadro muito útil, que delineia esses atos da razão e sua relação com a fé.[1] Este quadro é apresentado na tabela 1.1

Tabela 1.1

 

Reter/Simples

Apreensão

Compreensão/

Julgamento

Prova/Raciocínio

Apenas pela razão e não parte da revelação

O que é uma estrela

Que o universo de estrelas existe

O teorema de Pitágoras

Pela razão e pela fé na revelação divina

Que o universo é bem organizado

Que Jesus existiu no espaço-tempo histórico

Que o universo foi criado

Não pela razão, apenas pela fé na revelação divina.

O plano de salvação de Deus

Quanto Deus nos ama

Deus é uma Trindade.

 

Em relação aos objetos da razão correspondentes ao primeiro ato, simples compreensão, unicamente pela racionalidade humana e sem qualquer relação com a inspiração divina, podemos apreender o que uma estrela é. Isso não é algo revelado nas Escrituras, mas apreendido pela mente. Por intermédio do raciocínio humano, acompanhado da fé na revelação divina, podemos apreender que o universo é bem organizado, e porque ele é assim. Que o universo é bem ordenado é algo que podemos descobrir e julgar como verdadeiro pela investigação racional. Entretanto, isso também é algo revelado nas Escrituras, e que podemos aceitar pela fé. Por meio da divina revelação, podemos apreender qual é o plano de Deus para nossa salvação. Isso não é algo que podemos apreender pela simples observação do mundo, mas unicamente ao ouvir a Palavra de Deus (Rm 10.17).

Quanto aos objetos da razão correspondentes ao segundo ato, jul­gamento, podemos julgar apenas com a razão humana e sem qualquer relação com a revelação divina que o universo de estrelas realmente existe. Por intermédio do raciocínio humano, acompanhado da fé na revelação divina, podemos julgar que Jesus realmente existiu no espaço-tempo histórico. Agora, o fato de que Jesus existiu como ser humano é algo que podemos descobrir por meio da investigação histó­rica. Mas isso também é revelado nas Escrituras. Por revelação divina, podemos saber quanto Deus nos ama. Não podemos julgar isso pela simples observação do universo. Adquirimos esse conhecimento por meio da revelação divina.

Ao abordarmos os objetos da razão correspondentes ao terceiro ato, raciocínio, nós podemos, apenas com a utilização da razão humana e sem qualquer relação com a revelação divina, descobrir e demonstrar a veracidade do teorema de Pitágoras. Isso não se encontra revelado nas Escrituras. Por meio da razão humana, acompanhada da revelação divina, podemos demonstrar que o universo foi criado, e isso é algo que podemos demonstrar por meio de argumentos filosóficos, mas que também é revelado nas Escrituras. Portanto, podemos aceitar esse fato como uma conclusão do raciocínio ou por meio da fé como verdade revelada na Bíblia. Por meio da revelação divina, podemos aceitar a verdade de que Deus é uma Trindade. Entretanto, não podemos provar isso com raciocínio filosófico. Podemos demonstrar que isso não é uma crença irracional, mas não podemos compreendê-la ou prová-la e, tampouco, poderíamos apreendê-la sem a revelação divina. Chegamos a esse conhecimento por intermédio da revelação de Deus e devemos aceitá-lo pela fé.

O QUE É A FÉ?
Definição de fé. Fé é uma confiança pessoal em algo ou alguém. Fé salvadora é uma confiança pessoal em Deus, que é fiel à Sua Palavra. No livro de Romanos, Abraão é apresentado como um exemplo de fé salvadora (Rm 4.1-5). Ele acreditou em Deus quando, em Gênesis 15, Deus lhe fez a promessa de um herdeiro e que receberia toda a terra que sua vista alcançasse. Em Gênesis 15.6, lemos: “Abrão creu no Senhor, e isso lhe foi creditado como justiça”. A ideia básica de afirmação encon­trada neste versículo, “Abrão creu no”, é a ideia de convicção e firmeza que considera algo como certo. Abraão aceitou a palavra que ouviu de Deus como uma promessa que certamente se cumpriria. Ele confiou que Deus lhe daria um filho e a terra. Fé não é um anseio amorfo ou um desejo auspicioso por algo cujo cumprimento é incerto. Fé é uma convicção arraigada na fidelidade de Deus e na expectativa do cumpri­mento de todas as promessas feitas por Deus aos que confiam Nele.

Como observado no parágrafo anterior, às vezes, as pessoas argumentam que a fé é contrária à razão – a noção de acreditar em algo apesar da razão. Mas isso não é correto. A fé não é irracional ou contrária à razão. Na verdade, confiar em Deus é extremamente razoável, pois Ele tem demonstrado Sua fidelidade e lealdade continuamente. Mesmo quando parece que as promessas de Deus não se cumprirão, não seria, de fato, razoável duvidar de Deus. Fé é confiar em que Deus cumprirá o que disse que faria. Fé é uma confiança pessoal.

Ato de fé. Precisamos distinguir entre o ato e o objeto de fé. Fé é mais do que simplesmente acreditar que algo é verdadeiro. Kreeft e Tacelli apresentam quatro aspectos úteis da fé que resumiremos.[2] Primeiro, há o aspecto emocional da fé. Isso envolve sentimento de segurança, confiança ou certeza em uma pessoa. Esse aspecto da fé é caracterizado na Bíblia como esperança, mas não é apenas um pensa­mento anelante. Em vez disso, esperança nesse sentido é a expectativa confiante de receber, no final, aquilo que foi prometido.

O aspecto intelectual da fé é a crença. Tal aspecto é um compromisso estável e imutável fundamentado na verdade. Talvez seja isso o que as pessoas falam quando afirmam que acreditam apesar da razão. Com freqüência, as circunstâncias da vida nos influenciam a questionar a veracidade da Palavra de Deus. O aspecto intelectual da fé, entretanto, não está fundamentado nas aparências de momento, mas nas verdades sobre Deus e na realidade. Embora eu possa me sentir enfraquecido na fé, minha mente pode manter o compromisso de confiar em Deus em virtude do que sei ser verdadeiro em relação a Ele. Isso não é mera opinião, mas o firme compromisso de confiar em Deus fundamentado no que Ele é.

O aspecto volitivo da fé é o ato da vontade mediante o qual me comprometo a viver, pensar e agir com base na Palavra de Deus. Normalmente, esse aspecto é caracterizado como fidelidade, percebido na vida e nas ações das pessoas. Não apenas possuo um sentimento de segurança, não apenas tenho um firme compromisso com a verdade sobre Deus, mas também minhas atitudes baseiam-se nessa crença. Minhas escolhas, buscas, meus valores e objetivos são baseados naqui­lo com o que estou comprometido.

O ato da fé é mais do que apenas aceitar algo. No sentido bíblico, esse ato envolve toda a pessoa, suas emoções e vontade, seu intelecto e coração, em um compromisso total de confiança no outro. Foi isso que distinguiu Josué e Calebe do resto de Israel. “Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, dentre os que haviam observado á terra, ras­garam as suas vestes e disseram a toda a comunidade dos israelitas: ‘A terra que percorremos em missão de reconhecimento é excelente. Se o Senhor se agradar de nós, ele nos fará entrar nessa terra, onde manam leite e mel, e a dará a nós. Somente não sejam rebeldes contra o Senhor. E não tenham medo do povo da terra, porque nós os devoraremos como se fossem pão. A proteção deles se foi, mas o Senhor está conosco. Não tenham medo deles’ ” (Nm 14.6-9). Sem qualquer receio, eles con­fiaram em Deus e fundamentado nessa confiança foram obedientes, entraram na terra e a tomaram de seus habitantes, porque creram em Deus quando Ele disse: “Eu mesmo estarei com vocês” (Dt 31.23).

Objeto da fé. O objeto da fé é a pessoa ou coisa na qual alguém deposita sua confiança. Isso não inclui apenas a pessoa de Deus, mas também Suas palavras. As palavras de Deus abrangem tudo o que consideramos ser ensinado pelas Escrituras, incluindo-se as doutrinas bíblicas. Em outras palavras, o objeto da fé não é Deus apenas, mas tudo o que Ele revela na Bíblia. Contudo, o que é biblicamente revela­do são verdades que podem ser expressas em proposições. A Bíblia nos ensina que há certas coisas nas quais deveríamos crer. Por exemplo, a Bíblia nos ensina que o Deus de Israel é a única verdade e é o único Deus vivo: “Lembrem-se das coisas passadas, das coisas muito antigas! Eu sou Deus e não há nenhum outro; eu sou Deus, e não há nenhum como eu” (Is 46.9). Mas a afirmação “Eu sou Deus” nos é apresentada como algo a ser considerado como verdadeiro e crido.

Entretanto, as afirmações em si não são os objetos últimos da fé. Em vez disso, são os objetos imediatos da fé. O objeto último da fé é Deus, cuja natureza assegura a autenticidade das proposições feitas por Ele. Apenas aceitar que uma afirmação é verdadeira não é a mesma coisa que confiar na pessoa que faz a proposição. A pessoa não deve somente crer na veracidade das afirmações, crer realmente Naquele que é o Autor e Garantidor da fidelidade do que foi afirmado. No livro de Números, capítulo 14, Israel conheceu (creu) que Deus era capaz de conduzi-lo à terra, mas eles não confiaram em que Ele faria isso por eles.


[1]   KREEFT, Peter e TACELLI, Ronald K. Handbook of Christian Apologetics: Hundred of Answers to Crucial Questions. Downers Grove, III: InterVarsity Press, 1994, p. 33.

[2]    KREEFT e TACELLI, Handbook, p. 30-1.

Fonte: ENSAIOS APOLOGÉTICOS, por Thomas A. Howe e Richard G. Howe

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