Como esta questão do liberalismo e das relações entre a Igreja e o Estado é de grande momento e de muita atualidade, julgamos bom dar aqui um resumo autentico da doutrina católica sobre este ponto, para o que nós bastará transcrever o comentário que, baseando-se em documentos autênticos, nos dá o P. Choupin acerca da proposição 55 do Syllabo.
Ecclesia a Statu, Statusque ab Ecclesia sejungendus est. A Igreja deve estar separada do Estado, e o Estado deve estar separado da Igreja.
Esta doutrina é falsa, funesta à Igreja e ao Estado, e foi sempre condenada pelos soberanos Pontífices, e em particular por Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII e Pio X. “Não podemos”, diz Gregório XVI, “augurar tempos mais propícios para a Igreja e para o Estado, ao vermos os desejos dos que com tanto ardor pedem a separação entre a Igreja e o Estado e a ruptura da concórdia entre o sacerdócio e o império. É um fato averiguado que, o que os promotores da mais desenfreada liberdade sobretudo temem, é esta concórdia, que sempre foi salutaríssima e felicíssima para a Igreja e para o Estado”.
E Pio X, na sua bela Encíclica Vehementer, que solenemente condena a lei da separação entre a Igreja e o Estado, votada pelo governo francês (1905), resume admiravelmente a doutrina católica e os ensinamentos dos seus predecessores acerca desta questão fundamental.
Que seja preciso separar o Estado da Igreja, é esta uma tese absolutamente falsa, um erro perniciosíssimo. Com efeito, baseada nesse princípio de que o Estado não deve reconhecer nenhum culto religioso ela é, em primeiro lugar, em alto grau injuriosa para com Deus; porquanto o Criador do homem também é o Fundador das sociedades humanas, e conserva-as na existência como nos sustenta nelas. Devemos-lhe, pois, não somente um culto privado, mas um culto público e social para honrá-lo. Além disto, essa tese é a negação claríssima da ordem sobrenatural. De feito, ela limita a ação do Estado à simples demanda da prosperidade pública durante esta vida, a qual não passa da razão próxima das sociedades políticas; e, como que lhe sendo estranha, de maneira alguma se ocupa da razão última delas, que é a beatitude eterna proposta ao homem quando esta vida, tão curta, houver findado. E, no entanto, achando-se a ordem presente das coisas, que se desenrola no tempo, subordinada à conquista desse bem supremo e absoluto, não somente o poder civil não deve obstar a essa conquista, mas deve ainda ajudar-nos nela.
Essa tese subverte igualmente a ordem muito sabiamente estabelecida por Deus no mundo, ordem que exige uma harmoniosa concórdia entre as duas sociedades. Essa duas sociedades, a sociedade religiosa e a sociedade civil, têm, com efeito, os mesmos súditos, embora cada uma delas exerça na sua esfera própria a sua autoridade sobre eles. Daí resulta forçosamente que haverá muitas matérias que elas ambas deverão conhecer, como sendo da alçada de ambas. Ora, venha a desaparecer o acordo entre o Estado e a Igreja, e dessas matérias comuns pulularão facilmente os germes de contendas, que se tornarão agudíssimos dos dois lados; a noção da verdade será, com isso, perturbada, e as almas ficarão cheias de grande ansiedade.
Finalmente, essa tese inflige graves danos à própria sociedade civil, pois esta não pode prosperar nem durar muito tempo quando não se dá nela o seu lugar à religião, regra suprema e soberana senhora quando se trata dos direitos do homem e dos seus deveres.
Por isto, não têm os Pontífices romanos, segundo as circunstâncias e segundo os tempos, cessado de refutar e de condenar a doutrina da separação entre a Igreja e o Estado. Notadamente o Nosso ilustre Predecessor Leão XIII várias vezes e magnificamente expôs o que, consoante a doutrina católica, deveriam ser as relações entre as duas sociedades. Entre elas, disse ele, “cumpre necessariamente que uma sábia união intervenha, união que se pode, não sem justeza, comparar à que reúne no homem a alma e o corpo. Quaedam intercedat necesse est ordinata colligatio (inter illas), quae quidem conjunctioni non immerito comparatur, per quam anima et corpus in homine copulantur”. E acrescenta ainda: “As sociedades humanas não podem, sem se tornarem criminosas, comportar-se como se Deus não existisse, ou recusar preocupar-se com a religião, como se esta lhes fosse coisa estranha ou que de nada lhes pudesse servir… Quanto à Igreja, que tem por autor o próprio Deus, excluí-la da vida ativa da nação, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é cometer um grande e pernicioso erro.
O admitir, pois, que um Estado possa ser ateu e indiferente em matéria de religião, é admitir uma tese falsa, e contraria a religião e ao direito natural. E tem ele obrigações para com a religião, do mesmo modo que para com a Igreja.
“O julgar-se”, diz Leão XIII, “que, enquanto a religião, é indiferente o ter ela qualquer das formas heterogêneas e encontradas, vale o mesmo que não ter nenhuma e não se importar com nenhuma; é o ateísmo, ainda que a assim se não chame. Quem efetivamente crer em Deus, se for consequente, e não quiser cair num absurdo, tem forçosamente de admitir que de nenhum modo podem os diversos cultos em voga, tão diferentes entre si, tão heterogêneos e encontrados, mesmo em pontos de suma importância, ser igualmente bons diante de Deus e igualmente aceites”.
E depois de ter relembrado os ensinamentos dos seus predecessores, resume o mesmo Pontífice os princípios católicos sobre esta momentosa questão das relações entre a Igreja e o listado, para concluir com estas palavras: “Em vista destas decisões dos soberanos Pontífices é força admitir-se que o poder publico deriva, de Deus e não da multidão; que o direito de rebelião é contrario à razão; que vão se importa com os deveres religiosos ou tratar de igual modo as diversas religiões nem é licito aos indivíduos nem as sociedades; que a liberdade ampla de pensar e de trazer a publico as suas ideias de nenhum modo se deve contar entre os direitos dos cidadãos, nem deve ser tida como coisa digna de favor e de proteção.
“É também necessário admitir que a Igreja, do mesmo modo que o Estado, é por sua natureza e, com todo o direito uma sociedade perfeita; que os possuidores do poder não podem escravizar, nem subjugar a Igreja, nem tolher-lhe a liberdade dentro da sua esfera de ação, nem desposá-la de qualquer dos direitos que pelo seu divino Fundador lhe foram concedidos. Nas questões de direito misto é conforme com a natureza e com os desígnios de Deus não separar um poder do outro, e muito menos ainda o pô-los em luta; senão que é mister firmar entre eles uma concórdia que esteja em harmonia com as peculiares atribuições que cada sociedade por sua natureza possuí.
Tais são as normas pela Igreja Católica traçadas com respeito à constituição e governo dos Estados. Não condenam estes princípios e decretos, se judiciosamente se interpretarem, nenhuma das formas de governo usadas pelos povos, já que nada em si têm, que repugne a doutrina católica e muito bem podem, pautando-se pela prudência e pela justiça, garantir a prosperidade publica. Mais ainda: não é em si condenável que o povo tome uma parte maior ou menor no governo, o que até pode em certas ocasiões e sob uma determinada legislação vigente ser não só uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. Ninguém, além disto, pode com motivo justo acusar a Igreja de ser a inimiga de ,uma judiciosa tolerância ou de uma sã e legitima liberdade. Se, com efeito, a Igreja não considera como lícito que se equiparem os diversos cultos à verdadeira religião, não condena, contudo, os chefes de Estado que, tendo em vista alcançar um bem ou evitar um mal, toleram que cada um desses cultos também tenha logar nos seus Estados. Além de que, sempre a Igreja tem procurado com o maior cuidado que ninguém seja constrangido a abraçar contra a sua vontade a fé católica, porque, como afiladamente observa Santo Agostinho, não se pode crer senão com toda a vontade.
Fonte: Curso de Apologética Cristã, do pe. W. Devivier, S. J., de 1924.
Revisão e correção de texto: Emerson de Oliveira