Nestes dois livros o autor (Mario Dias Ferreira dos Santos, 3 de janeiro de 1907 a 11 de abril de 1968, 61 anos), como nos evidencia os títulos dos mesmos, nos faz um convite e uma introdução ao pensamento filosófico. Abordando conceitos essenciais para iniciantes como eu, ao mesmo tempo que expõe temas de grande complexidade e que servem desde os tempos remotos até os dias de hoje como palco para debates fervorosos. Assim o autor além de fazer um convite, numa espécie de incitação à filosofia, inicia o leitor na própria filosofia e ainda lhe dá um panorama a respeito de praticamente todas as discussões que se sucederam no passar dos milênios.
Eu não sintetizarei muito as partes de ambos os livros relacionadas a própria história da filosofia e as cosmovisões existentes, pois são tantas vertentes filosóficas diferentes que além de me faltar conhecimento mais profundo sobre elas, elas mesmas nos próprios livros já são fruto de uma síntese. Logo eu não faria mais que dar uma leve resumida nos próprios temas abordados, o que seria desnecessário, é mais recomendável ler essas partes de ambos os livros para ter esse vislumbre panorâmico a respeito da história do pensamento filosófico.
Portanto me atentarei aqui a parte de cunho mais técnico, o que entendi por ser a própria prática filosófica. Confesso também que possuo mais interesse na parte, assim denominada, mais técnica, talvez pelo meu interesse na computação, independente disto, fato é que possuo mais interesse nessas partes, claro, sem querer deixar de lado a importância do conhecimento histórico que é de grande valor.
Comecemos portanto pelo significado da palavra fato. Fato é o que se dá aqui e agora. A folha de uma árvore que cai ao chão é um fato, o vento que bate em meu rosto, outro fato. Todos os fenômenos que estão acontecendo aqui e agora são os chamados fatos.
O que chamamos de realidade nada mais é do que a conexão desses fatos condicionados na noção de espaço e tempo. No meu entender o tempo e o espaço são uma estrutura onde os fatos se assentam. É sobre eles que os fatos se sucedem. É portanto a realidade a totalidade dos fatos existentes conexionados condicionados às noções de espaço e tempo.
Nós seres humanos interagimos com esta realidade a nossa volta e esse processo de interação se desdobra em dois aspectos, um é a nossa intuição e o outro a nossa razão.
A princípio vejamos a intuição. Intuir significa “ir para dentro”. O que ocorre é que nossos sentidos captam os fatos da realidade a nossa volta, mas não o fato concreto, porque obviamente é impossível transportar, por exemplo, fisicamente uma árvore para dentro de nossa mente. No meu entender o que ocorre é que os objetos nos transmitem informações, essas informações são correspondentes as suas características.
As informações que nossos sentidos recebem vem como um todo. Por exemplo, a nossa visão, que recebe como que um bloco de informações. Porém é importante salientar que quando digo “um todo”, não me refiro a recepção de todas as informações de modo objetivo da realidade a nossa volta, o que ocorre é que nossos sentidos fazem uma espécie de recorte da realidade a nossa volta, as informações que recebemos, digamos, mais objetivamente, são as que estão dentro do nosso alcance perceptivo, ou seja, até o ponto onde nossa visão alcança, até o ponto onde nossa audição alcança, e assim segue para os outros sentidos. Mas essas informações que vem de todos os nossos sentidos, as recebemos numa espécie de “todo”. Por mais que a luz de um raio chegue primeiro que seu som, no momento em que estamos ouvindo algo estamos também vendo algo, e nesse instante estamos recebendo simultaneamente tais informações vindas de nossos sentidos.
Esse bloco de informações é empurrado para dentro de nós, assim o intuímos. Mas a intuição não é apenas a recepção de informações da realidade, ou melhor, da exterioridade do nosso ser.
Pois a partir do momento em que recebemos essas informações, entra em cena algumas operações de nosso espírito. A primeira é a diferenciação das coisas, é importante salientar que as informações que recebemos vem a nós como num fluxo de dados contínuo, porém não é algo homogêneo mas sim heterogêneo, as informações já vem diferenciadas, mas, ainda assim, nosso espírito precisa perceber essa diferença, e é por isso que a primeira operação do espírito após o recebimento das informações vindas dos fatos da realidade, é a diferenciação. Isolamos com a mente todas coisas recebidas. A segunda operação do espírito é a busca por semelhança entre as coisas diferenciados. Inclusive, é por isso que a diferenciação vem antes da busca por semelhança. Pois só conseguimos buscar semelhantes se houver diferença entre as coisas, pois se tudo fosse uma coisa só, não haveria porque buscarmos semelhança.
Esse processo de perceber o diferente e buscar o semelhante, é o que chamamos de comparação. Na prática, quando olhamos para o horizonte, vemos duas árvores, automaticamente aqui já realizamos a diferenciação das coisas, no instante em que olhamos as coisas a nossa volta já percebemos que há coisas diferentes. Mas também instantaneamente já realizamos a busca por semelhanças entre as coisas, portanto, quando vemos duas árvores diferentes no horizonte, também notamos que essas duas coisas compartilham de características iguais, são semelhantes, ambas são o que chamamos de “árvore”.
Mas o termo “árvore” ou seja lá qual for a palavra que usemos para nos referir ao objeto, vem num processo posterior a este que estamos abordando. Pois o termo se refere a um conceito, que por sua vez se refere a um objeto. O que ocorre é que após compararmos as coisas, isto é, após percebermos as diferenças e buscarmos as semelhanças, também, instantaneamente criamos um conceito. Aqui me refiro ao conceito mental e não a palavra, que é seu enunciado verbal. Apenas o conceito que é inexpressível e está somente na mente do sujeito.
O conceito é a estabilização do diferente e do semelhante. Todo conceito é assim formado, é fruto da comparação. Portanto, quando olhamos as árvores no horizonte, percebemos que são duas coisas que além de diferentes, também possuem um vínculo entre elas, algo que as une, o que as une, é propriamente o conceito.
Esse processo que começa na recepção das informações vindas dos fatos da realidade, até este ponto da formação do conceito mental é propriamente parte de todo o processo intuitivo. A intuição é esse processo.
É após a concepção do conceito metal, ai sim, criamos um enunciado verbal, isto é, uma palavra, por exemplo, como a palavra “árvore”. Assim temos o conceito final, que é o conceito mental com seu enunciado verbal.
E aqui entra em cena o outro aspecto do ser humano, que é a razão. A razão é uma operação do espírito que dá ordem aos fatos intuídos, e ela faz isso através do conceito. A razão recebe o conceito mental formado pela intuição, por exemplo, no simples olhar do horizonte, e compara este conceito com outros, busca informações na memória, mas não apenas isso, a razão também organiza os conceitos, hierarquiza os mesmos, move-os para aqui e acola, cria novos conceitos, concatena um no outro, realiza abstrações, em resumo, a razão administra, gestiona os conceitos e através deles dá sentido as coisas.
Da intuição recebemos apenas o conceito mental inexpressível, e é na razão que vamos formalizá-lo. Por trás da palavra, que é o enunciado verbal, temos ainda a definição. Definição é quando o conteúdo perfeitamente se ajusta ao fato que se refere. Isto é, a definição é uma delimitação, um contorno que fazemos através da linguagem para abarcar o conceito que formamos mentalmente, conceito este que se refere ao objeto, ou melhor, ao fato intuído.
É portanto basicamente nisto que se resume os dois aspectos do ser humano, a intuição e a razão. Onde por meio dos sentidos intuímos os fatos da realidade, e desses fatos decorrem o conceito, que é fruto de uma operação mental, onde já se inicia a razão, formalizando esses fatos, os estabilizando e formando o conceito final com seu enunciado verbal, a palavra, e a definição do mesmo.
Temos então estes dois processos intelectuais do nosso espírito: intuição e razão. A intuição, que é a apreensão direta do fato individual, tendendo assim para o individual. E a razão que tende para o parecido e geral. A intuição é o conhecimento individual. A razão identifica no individual o que o mesmo tem de semelhante com outros fatos individuais e lhe dá um enunciado verbal, a palavra.
O interessante que se nota e que quero destacar aqui é este dualismo do nosso espírito. Onde a intuição tende para o individual, para o diferente, para o heterogêneo, para o variante. E a razão tende para o semelhante, para o parecido, para o homogêneo, para o geral, tendendo ao idêntico.
Por isso que na intuição não temos um conhecimento propriamente dito, pois nela se dá apenas a apreensão direta do fato. E no conhecimento há um reconhecimento, por isso é exigido a memória, não absorvemos o conhecimento propriamente dito, apenas recebemos informações, digamos, preprocessadas e fazemos um reconhecimento delas e assim temos o conhecimento. O que se dá pela primeira vez não podemos conhecer, para conhecer é preciso a classificação, o ordenamento, é preciso dizer o que é, e para isso utilizamos da razão.
Como o próprio Mario cita no “Filosofia e Cosmovisão”: O ato de comparação não é ainda um verdadeiro conhecimento racional. A formação lenta da razão nasce da aplicação constante e espontânea do nosso espírito em direção ao semelhante.
Foi dito também que o conceito é fruto da comparação, de fato é, mas isso em linhas gerais, sendo mais específico, o conceito é fruto de uma abstração. Abstração significa “separar para o lado, pôr à parte”, mas isso apenas mentalmente. No processo de abstração retiramos à parte de um objeto, ou melhor, desassociamos, o que não permite a desassociação. Porém realizar este processo de abstração para a formação do conceito, implica necessariamente no uso da comparação, que por sua vez tem a diferenciação como anterior a busca por semelhantes. É por isso que é dito também que a comparação vem antes da abstração, ou seja, que a abstração é posterior a comparação. Este processo de abstração que resulta na formação de um conceito, é parte da razão.
Esse dualismo entre razão e intuição também se desdobra em outros temas, como por exemplo, a questão do tempo e do espaço. O espaço é concebido pela razão pois o mesmo remete a noção de extensidade. Enquanto o tempo remete a noção de intensidade.
O espaço é medível por ser homogêneo, claro, medível quando temos pontos de referência, portanto medimos o espaço entre uma coisa e outra. O mesmo continua estático, enquanto o fatos estão sucedendo, podemos realizar nossas medições espaciais.
Já o tempo aparece-nos como sucessão. Um tempo é sempre seguido de outro, sendo impossível apreendê-lo como se faz com o espaço que nos aparece como simultâneo (um pedaço do espaço ao lado de outro, formando um todo homogêneo).
O tempo só é medível quando o espacializamos, ele em si mesmo torna-se inexpressível. Portanto com base no movimentos dos objetos em relação a outros medimos o tempo, e apenas assim, sempre espacializando. Uma definição que é utilizada por muitos sobre o tempo, é que o mesmo é a medida do movimento.
Portanto o espaço tende para a extensidade, para o homogêneo, para a razão. E o tempo para a intensidade, para o heterogêneo, para a intuição.
E nesse dualismo antagônico que se desdobra o ser humano e as coisas a nossa volta.
Por fim, nas páginas 197, 198, 199, 200 do “Filosofia e Cosmovisão” o Mario lista alguns conceitos básicos antagônicos da razão e da intuição:
“A razão é espacializante (o espaço é o meio da coexistência, da simultaneidade, da reversibilidade). É eminentemente extensiva. A razão nos dá a visão da extensidade.”
“A intuição tende para um dinamismo da intensidade, da temporalização.”
Razão:
1 – O semelhante – O parecido.
2 – A quantidade – A materialidade e a espacialidade nos dão a idéia da quantidade que é homogênea. Temos daí a grandeza, o número, todos de ordem geneticamente visual.
3 – A Imutabilidade – Através do que flui, do que muda, do que se transforma, do que é móvel, deve haver algo de imutável, de permanente, que se conserva. Esse conceito surge como um ponto alto da reflexão e funda o princípio de identidade.
4 – A imobilidade – A visão precisa fixar, parar, reduzir o movimento ao mínimo, para ver. O conceito da imobilidade liga-se à invariabilidade, ao “invariante”.
5 – O Ser. A Suma Abstração da razão, afirmação da existência.
6 – A Eternidade – É preciso negar o tempo, o devir. A eternidade torna simultâneo todo o ser, dá-lhe o atributo da imutabilidade.
7 – Necessidade.
8 – Determinismo (causalidade). São ininteligíveis a contingência e a liberdade para a razão. O princípio de causalidade, liga, solda, dá uma continuidade espacial aos factos, causa e efeito.
9 – Actualidade – O devir é a passagem da potência (como virtual) para o acto. Para contradizer o devir, tudo é actua1izado, porque só vemos o que é actualizado. A potência não é visível. A actualidade gera o actualismo, que só valoriza o que se realiza, e tudo o mais fica marcado com o nome genérico de possibilidades. Observe-se que quase todas as filosofias racionalistas são actualistas. O que se actualizou, se realizou; era inevitável, tinha uma razão suficiente ou uma causa, o que permite também uma justificação do que acontece.
10 – O Espaço – é o infinito estático. É uma consequência da espacialidade. É uma abstração operada sôbre a extensão concreta. (A visão é imobilizadora. A razão procede pela negação do dinamismo de diferenciação).
11 – A substância – A razão elimina da realidade os aspectos individuais, variáveis, contingentes, para buscar o que está abaixo, o que sub-está, a substância que não varia, o substractum.
12 – Unidade – É a síntese, tomada indivisamente.
Intuição:
1 – Diferente – É o contrário da identidade, da homogeneidade. É o heterogéneo. O que não é comparável, o que não é própriamente visto, mas compreendido por negação (o não-igual, o não-semelhante, o não-parecido).
2 – Qualidade – Esta não se vê intrinsecamente. Vemos coisas amarelas, mas não o amarelo (que é um conceito).
3 – Câmbio (mutação) – Este nos é dado pela desaparição, pela destruição que é uma manifestação lenta.
4 – O movimento – A visão é cinemática. Apanha uma série de deslocamentos, uma sucessão de repousos, uma sucessão descontínua. A intuição penetra no essencial do movimento, na sua fôrça.
5 – Devir – O devir é invisível. Nós temos a sucessão, os resultados.
6 – Tempo – Colocamos o tempo como oposição da eternidade (que não é tempo, onde acaba todo o tempo). O tempo está fora do visual, e a razão não pode comprendê-lo. A razão nega-o pela eternidade.
7 – Contingência.
8 – Liberdade – Indeterminismo como intuição interior de causação.
9 – A potencialidade – A potência não tem razão suficiente, porque a razão só concebe, só valoriza a actualidade.
10 – Força – é o infinito dinâmico; não é visível.
11 – O Eu – Não é espacializante, Funda-se na afectividade. Não é visível. Seu desenvolvimento é subjectivo, interiorizado.
12 – A pluralidade – A multiplicidade. É a análise.
Livros: Convite à Filosofia e à História da Filosofia; e Filosofia e Cosmovisão. Do autor Mario Dias Ferreira dos Santos.
Autor: Jessé Silva.