A seguinte conversa foi retirada de um grupo no Facebook chamado Arapuca da Brasilball (na teoria, um grupo de debate geopolítco). Tudo começou com uma postagem comemorando o aniversário da Batalha de Poitiers e a vitória de Carlos Martel. Agradecimentos ao Repensando a Idade Média pelo envio.
L.C.: A melhor coisa que poderia ter acontecido a Europa seria ela ter sido islamizada. Não se esqueçam que enquanto a Europa vivia a Idade das Trevas, o Oriente Médio (+ Magrebe) vivia uma época de luz. Enquanto os cristãos queimavam livros, os muçulmanos escreviam. Enquanto os cristãos queimavam e torturavam aqueles que supostamente poderiam vir a ser hereges, os muçulmanos deixavam a liberdade religiosa fluir, e foi a casa de muitos cristãos e judeus naquele milênio. Enquanto o Papa emitia a bula falando que Deus deu o aval para matar muçulmanos a vontade. Saladino reconquistava a Palestina e permitia os cristãos professarem sua fé por ato de compaixão. Só te digo isso: Se eu fosse daquela época, preferia muito mais viver nos califados do que nos reinos europeus.
Carlos Schwambach: Boa parte do que você disse são mitos, Leonardo. Tirando por matarem hereges, os monges copiavam o máximo de livros romanos e gregos que conseguiam, tentando salvar conhecimento antigo (se duvida, lembre-se que Santo Agostinho e Tomás de Aquino se basearam parcialmente no platonismo). Os Estados Cruzados também deram liberdade religiosa aos muçulmanos e judeus, apesar do massacre que houve na tomada de Jerusalém, e um chefe árabe chegou até a admitir que ele estava vivendo melhor sob julgo “franco” (segundo a minha cópia da Enciclopédia Britânica): Baha ad-Din inclusive mencionou que os “francos” cobravam taxas surpreendentemente baixas*.Quando Urbano II convocou as cruzadas, pelo próprio discurso dele (que eu li) dá para dizer que a intenção primária era impedir que os turcos avançassem mais sobre os gregos criando uma distração E melhorar as condições de peregrinação (pois os peregrinos que iam para Jerusalém eram atacados por bandidos turcos e às vezes barrados).
Aliás, se os muçulmanos tendiam mais para a liberdade religiosa, eles também perseguiam hereges: veja os conflitos entre sunitas e xiitas. por exemplo, ou o caso dos Mártires de Córdoba**. Algo similar ocorria no mundo cristão, aonde muçulmanos eram tolerados (ao menos no caso da Ibéria e Sicília, que foram os pontos de maior contato) e os judeus também, e embora os judeus às vezes fossem proibidos de portar armas, chegaram a prosperar e criar uma espécie de proto-bancos. Claro, havia pogrons. Às vezes incitados por um padre doido ou por um nobre menor ou mercador que devia dinheiro aos judeus, mas com algumas exceções, a Coroa e o Alto Clero geralmente tentavam os impedir: no caso do Pogrom de York de 1190. por exemplo Ricardo I puniu aqueles que incitaram o pogrom. E no caso da série de pogrons que ocorreram na Alemanha após o começo da Primeira Cruzada, houve vários casos de bispos que tentaram proteger os judeus (embora não muitos tenham conseguido).AIiás. uma grande ironia é que muitos dos judeus que foram expulsos da Espanha pelos ditos Reis Católicos acabaram por fugir para o Vaticano, e olha que Rodrigo Borgia provavelmente foi o Papa mais canalha que já existiu.
Aliás, se a Europa Medieval vivia uma Idade das Trevas, como é que um remédio anglo-saxão teria matado uma superbactéria moderna, ou que eles faziam cirurgias de catarata, ou criaram as primeiras universidades (os muçulmanos tinham instituições de ensino superior já. mas eram mais “faculdades”, pois tinham poucas matérias e uma estrutura administrativa diferente).
* Enquanto os árabes tinham baixas tarifas alfandegárias, os europeus tinham taxas mais baixas para o resto.Deixando de lado os servos, é claro, mas eles eram os aldeões que não tinham terra própria e viviam e cultivavam em terra emprestada, então nada mais justo que um pagamento extra.
**Embora nesse caso tenha sido um pogrom popular, sem incitação do governo, ele fez vista grossa.