
Em mais um vídeo desses simplistas palpiteiros com ideias malucas vem mais esse que o público pediu para eu responder. Essas ideias não são levadas à sério por ninguém.
Comentário Acadêmico: Entre Narrativa e Hipótese — Uma Análise Crítica da Abordagem Flaviana no Vídeo “Jesus Existiu? A Verdade Sobre a CRIAÇÃO DO MITO”
O vídeo analisa a chamada “teoria flaviana”, segundo a qual os evangelhos, em especial o de Marcos, teriam sido compostos sob influência direta — ou mesmo patrocínio — da dinastia flaviana (Vespasiano, Tito e Domiciano), com o objetivo de instrumentalizar a figura de Jesus como uma figura messiânica controlada, capaz de neutralizar o messianismo judaico revolucionário após a guerra de 66–73 d.C. Ao contrário da busca pelo “Jesus histórico”, o apresentador — Francis — propõe uma mudança de foco: do personagem para o autor, entendido como agente ideológico inserido num contexto imperial.
Podemos confiar nos evangelhos – Peter Williams
O Jesus fabricado – Craig Evans
A prova definitiva que Jesus é real – Jadson
Jesus fora do Novo Testamento – Robert
Essa mudança — do Jesus como sujeito da história para o evangelho como produto de propaganda romana — é apresentada como uma distinção metodológica fundamental: enquanto os historiadores críticos buscam reconstruir uma figura mínima de Jesus por trás das camadas teológicas, os flavianos assumem a literalidade da narrativa evangélica como intencionalidade autoral — isto é, o Jesus milagroso, profético e divino não é um acréscimo posterior, mas a figura originalmente construída pelos autores, com vistas a fins políticos e ideológicos.
Abaixo, a análise se organiza em quatro eixos críticos fundamentais.
1. Enquadramento teórico: a inversão da prioridade hermenêutica
O vídeo defende uma versão da chamada “teoria flaviana”, segundo a qual os evangelhos — especialmente o de Marcos — seriam produtos de uma engenharia ideológica imperial após a guerra judaica (66–73 d.C.), com o objetivo de neutralizar o messianismo revolucionário por meio da criação de um “Jesus romano”: uma figura divina, pacifista, pró-Roma, cuja narrativa substituiria a expectativa judaica de um Messias guerreiro anti-romano.
A distinção metodológica central proposta pelo apresentador é a seguinte:
“Enquanto Jesus histórico foca no personagem e no seu contexto, a pesquisa flaviana foca no autor — e, por extensão, no contexto do autor.”
(00:58–01:26)
Essa inversão é relevante: ao assumir a literalidade da narrativa evangélica como intencionalidade autoral (Jesus realmente nasceu de virgem, andou sobre as águas, fez profecias sobre 70 d.C., etc.), a abordagem flaviana rejeita o modelo estratigráfico dominante na crítica histórica (cf. Meier, A Marginal Jew; Dunn, Jesus Remembered), segundo o qual camadas teológicas posteriores recobrem um núcleo histórico mais modesto.
Essa escolha não é metodologicamente neutra. Ela equivale a uma hermenêutica intencionalista forte, na qual o texto é lido como design proposital — não como sedimentação de tradições comunitárias, mas como projeto ideológico unitário. Isso pressupõe:
- Um autor (ou oficina autoral) com clareza política e teológica excepcional;
- Um controle editorial total sobre a tradição oral e escrita pré-existente;
- Uma capacidade de impor uma narrativa em larga escala sem resistência documental visível.
Tais pressupostos são, no mínimo, problemáticos do ponto de vista da teoria da tradição oral (cf. Kelber, The Oral and the Written Gospel; Gerhardsson, Memory and Manuscript), que mostra como comunidades pré-literárias preservam e adaptam material por meio de processos descentralizados e plurivocais — não por decreto imperial.
2. Uso de fontes: apelo ao contexto judaico pré-70 como “fundo histórico incompatível”
O argumento central do vídeo é de incongruência contextual. O apresentador recorre extensivamente aos Textos de Qumran, especialmente ao Pergaminho da Guerra (1QM) e aos Targuns, para reconstruir a expectativa messiânica judaica do século I como essencialmente belicosa e anti-romana:
“O Messias esperado era um guerreiro que vinha para matar todos os inimigos. Aí onde você encaixa Jesus aqui?”
(08:36)
Esse uso das fontes é parcial e anacrônico em dois sentidos:
a) Homogeneização da pluraridade judaica
A literatura de Qumran expressa a visão de uma seita minoritária, marginalizada (os yahad), e não representa o judaísmo como um todo. Há evidências de messianismos pacíficos, sacerdotais e celestiais já no século I a.C.–I d.C.:
- O Salmo de Salomão 17 (c. 50 a.C.), por exemplo, descreve um Messias que governa com justiça e sabedoria, não com espada (vv. 32–36);
- Filo de Alexandria (De Vita Contemplativa) descreve os terapeutas, grupo ascético e místico, sem hostilidade anti-romana;
- Josefo (Ant. XVIII.116–119) relata múltiplos “falsos profetas” e “reis”, com agendas diversas — nem todos violentas.
Ignorar essa diversidade equivale a reduzir o judaísmo do século I a uma caricatura militarista, como se só existisse uma expectativa messiânica — aquela que melhor serve à tese flaviana.
b) Anacronismo estratigráfico
O vídeo assume que todos os textos citados estavam em circulação antes de 70 d.C. e que eram conhecidos por todos os judeus. Mas:
- Muitos manuscritos de Qumran são datados após 70 d.C. (cf. J. Magness, The Archaeology of Qumran and the Dead Sea Scrolls);
- O Pergaminho da Guerra (1QM) provavelmente reflete uma reformulação pós-destruição, não uma expectativa prévia;
- Targuns aramaicos são traduções litúrgicas posteriores — os mais antigos datam do séc. II–III d.C.
Assim, usar esses textos como prova de que Jesus não poderia dizer “amai os inimigos” é cair no erro do presenteísmo historiográfico: julgar o passado com categorias que ainda não estavam plenamente formadas.
3. Falácia da “guerra de dois mundos”
O vídeo constrói uma dicotomia rígida:
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Mundo 1 (judaico “autêntico”)
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Mundo 2 (evangélico “imperial”)
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Messias guerreiro
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Messias pacifista
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Ódio aos romanos
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Amor aos inimigos
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Templo e sacrifícios
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Nova aliança, fim dos sacrifícios
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Exclusivismo étnico
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Universalismo gentílico
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Essa dicotomia é maniqueísta e historicamente falsa.
a) Jesus e o messianismo não-bélico já existiam
Jesus não é o único judeu do século I a pregar amor aos inimigos ou crítica ao templo:
- O Testamento dos Doze Patriarcas (séc. II a.C.–I d.C.) exorta: “Amai a todos os homens, mesmo os que vos odeiam” (T. Benjamim 4:3; T. José 17:2);
- Filo exalta o logos como mediador universal, capaz de unir judeus e não-judeus;
- João Batista também critica o templo e enfatiza ética interior (cf. Flávio Josefo, Ant. XVIII.116–119).
b) A crítica ao templo não é “romana”
A crítica ao templo por figuras judaicas é amplamente documentada:
- Os essênios rejeitavam o culto de Jerusalém como corrompido (cf. 1QS VIII–IX);
- Jesus, ao “profetizar” a destruição do templo (Mc 13,1–2), insere-se em uma tradição profética interna ao judaísmo — como Jeremias (Jer 7), que também anunciou a destruição do templo por causa da injustiça social.
Dizer que “só Roma poderia querer o fim do templo” é ignorar que muitos judeus já o viam como símbolo de corrupção religiosa e colaboração com Roma.
4. Problemas metodológicos explícitos
a) Confusão entre hipótese e equipolência epistêmica
“Tanto o Jesus histórico é uma hipótese quanto o conceito flaviano é uma hipótese. As duas são hipóteses. Uma está dentro da academia, a outra tá fora, mas as duas tem a pesquisa eh se equivalem.”
(04:40)
Essa afirmação comete o erro de equiparação falsa (false equivalence). Sim, ambas são hipóteses — mas:
- A hipótese do Jesus histórico é sustentada por consenso amplo (Bart Ehrman, Paula Fredriksen, Gerd Theissen, James Dunn, Amy-Jill Levine, etc.), baseado em critérios de historicidade testados (embaraço, múltiplos testemunhos, coerência contextual);
- A hipótese flaviana não possui suporte em peer review, não foi publicada em revistas indexadas, e carece de demonstração filológica rigorosa.
A equipolência epistêmica exige paridade de evidência, rigor e diálogo com o estado da arte — o que não ocorre.
b) Ausência de evidência positiva
A tese flaviana depende quase exclusivamente de leituras implícitas, lacunas e incongruências percebidas. Mas:
- Não há nenhum documento romano (inscrições, moedas, editos, cartas) que mencione a criação de uma figura messiânica por Vespasiano;
- Josefo (Guerra dos Judeus VI.312–313), a única fonte que associa Vespasiano a uma profecia messiânica, não menciona Jesus;
- O Testimonium Flavianum (Ant. XVIII.63–64), a única referência direta, é quase unanimemente considerada interpolada (cf. Feldman 1992; Paget 2001).
A ausência de evidência positiva torna a hipótese não-falsificável — e, portanto, fora dos limites do método histórico-científico (Popper, Conjectures and Refutations).
5. Propaganda imperial? Uma contraprova: a perseguição romana
O ponto mais frágil da tese flaviana é sua incoerência com a legislação e prática romanas:
- Roma só reconhecia cultos com antiquitas (antiguidade comprovada). O cristianismo era classificado como superstitio illicita (Plínio, Carta X.96; Suetônio, Cláudio 25.4).
- Se o cristianismo fosse uma criação flaviana, como explicar a perseguição sistemática desde Nero (64 d.C.) até Domiciano (81–96 d.C.)?
- Como explicar que Plínio, em 112 d.C., ainda precisa consultar o imperador sobre como tratar cristãos — como se fossem uma novidade incômoda?
A hipótese flaviana exige crer em uma autossabotagem imperial absurda: criar uma religião para controlar os judeus… e depois persegui-la por séculos.
Conclusão: entre provocação intelectual e especulação não controlada
O vídeo é um exemplo de ativismo historiográfico periférico: busca questionar consensos, recorre a fontes primárias (ainda que seletivamente), e levanta perguntas legítimas sobre o impacto do contexto pós-70 na redação evangélica.
Contudo, não constitui uma alternativa historiográfica viável, pois:
- Opera com pressupostos conspiratórios não verificáveis;
- Ignora a pluraridade do judaísmo antigo;
- Confunde possibilidade lógica com plausibilidade histórica;
- Ausenta-se do diálogo com a metodologia crítica consolidada;
- Não oferece evidência positiva, apenas reinterpretações negativas.
A tese flaviana poderia se tornar uma contribuição séria se:
- Publicasse análises filológicas detalhadas (ex.: uso de termos latinos em Marcos, estrutura narrativa imperial);
- Propusesse novas predições testáveis (ex.: “Se for flaviano, devemos encontrar X em Y manuscrito”);
- Submetesse artigos a revistas peer-reviewed (ex.: Journal for the Study of the New Testament, Vigiliae Christianae).
Até lá, permanece como exercício de pensamento contrafactual estimulante, mas não como hipótese historiográfica sustentável.
Referências para aprofundamento
- GOODMAN, Martin. Rome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations. Penguin, 2007.
- FREDRIKSEN, Paula. When Christians Were Jews: The First Generation. Yale UP, 2018.
- THISEN, Gerd; MERZ, Annette. The Historical Jesus: A Comprehensive Guide. Fortress, 1998.
- HENGEL, Martin. Was Jesus a Revolutionist? Fortress, 1991.
- KNAPPERT, Emile. Early Christian Literature and Greco-Roman Context. Brill, 2022.
- VANDERKAM, James. The Dead Sea Scrolls Today. Eerdmans, 2010.
Poderá ver o vídeo no youtube Aqui
