O site secularista Hypescience publicou uma matéria chamada “Deus não é o Criador, afirma estudiosa da Bíblia”, onde divulga as teses de Ellen Van Wolde, estudiosa do Velho Testamento da Universidade de Radboud, na Holanda.
Basicamente, a tese dela é a de que a discussão gira em torno de novas possibilidades para a tradução do verbo hebraico bara (בָּרָא). Em Gn 1,1 esse verbo tem sido tradicionalmente interpretado como dando a idéia de uma “criação do nada(ex nihilo)”. A autora faz comparações entre o capítulo 1 de Gênesis e o famoso e extremamente antigo mito sumeriano da criação. Este último relato não fala de uma criação a partir do nada, mas narra a organização do mundo em três níveis: céu, terra e mundo inferior, separados pela ação de uma das inúmeras divindades existentes. Para a autora do artigo, a Bíblia seguiria o mesmo padrão do relato mesopotâmico, mas foi interpretada de forma diferente ao longo da história do pensamento judaico cristão.
Assim, em primeiro lugar vemos que Wolde alega duas coisas: que Deus não “criou” o universo, mas sim “separou espacialmente” os materiais pré-existentes.A nota de imprensa termina com uma citação impressionante da van Wolde: “A visão tradicional de Deus como Criador é agora insustentável”. Em segundo lugar, ela alega que os textos iniciais seguem o mesmo padrão que os sumérios. Com isso, a ideia de ‘criação ex nihilo’ ficaria abalada e o contexto daria a entender que não houve um momento inicial da criação. Vamos comentar.
Wolde afirma ter realizado uma análise textual que sugere que os escritores da Bíblia não tinham a intenção de afirmar que Deus criou o mundo – e que, de fato, a Terra já existia quando ele criou os humanos e os animais. A pesquisadora analisou os escritos originais do hebreu e colocou-os no contexto da Bíblia como um todo, e no contexto de outras histórias de criação da antiga Mesopotâmia.
Que “análise textual” seria essa? É acadêmica e logicamente válida? Analisamos o artigo original dela em holandês e vimos que é profundamente falho e insuficiente para justificar sua proposta reconversão. Arie Leder, estudiosa do Antigo Testamento, comentou que “tradução e leitura de Van Wolde não é sem problemas… caveat lector [‘que o leitor tenha cuidado’],” e concordo plenamente com essa conclusão. No entanto, o objetivo deste artigo não é discutir a linguística hebraica de van Wolde, mas criticar sua metodologia. Mesmo se estivermos de acordo com a tradução e leitura da Bíblia de van Wolde, o que na maioria das vezes não estamos, ela não consegue provar seu ponto, porque seu processo analítico é falho.
Van Wolde se aproxima da análise do hebraico bíblico como se estivesse usando o método científico: ela propõe um “teste” de sua “hipótese.” Por isso, parece justo criticar seu artigo sobre essa base. O erro de van Wolde é facilmente exposto, e não precisa ser um estudioso do hebraico para ver isso. Um dos princípios mais importantes na interpretação de textos bíblicos é que a coerência e harmonia da Escritura deve ser mantida – se nossa interpretação de uma passagem contradiz o ensino claro de outra passagem então alguma coisa está errada. O principal erro de Van Wolde parece ser que ela procura harmonizar o relato bíblico da criação com os mitos da criação da Mesopotâmia, em vez do resto da Bíblia. Ela afirma que a palavra hebraica bara não significa “criar”, mas “separar espacialmente”. [Mas tente isso com Gn. 1,21, que por seu “raciocínio” teria que ler: “E Deus separou espacialmente os monstros marinhos, e todo tipo de criatura que se move através da água viva, e todo tipo de pássaro que voa. “- Ed].
No entanto, em outros lugares na mesma passagem, onde o contexto indica claramente a separação, tais como a luz das trevas (Gn. 1,4) e águas abaixo e acima da “expansão” (Gn. 1,6-7), outra palavra hebraica é usada – formas de בָּדַל ” badal “. Se o texto quisesse dizer “No princípio, Deus separou o Céu e a Terra”, por que não usou badal? Em vez disso, Ele usou bara, a mesma palavra que ele usou, por exemplo, quando se refere à criação do homem à Sua própria imagem.
Além disso, o própria abstrato de van Wolde diz sobre os mitos da criação da Mesopotâmia, “o verbo sumeriano bad e o verbo acadiano Parasu empregado nestes textos, designam claramente ‘separar’. Mas então não seria correto utilizar o verbo paralelo sumeriano badal em vez de bara?
Sobre a alegação de que tem ligação com outras cosmogonias sumérias, já dissertamos sobre isso aqui. Muitos não-cientistas, como van Wolde, acreditam que a essência do método científico está em testar uma hipótese, mas isso é apenas um aspecto dele. A chave para o método científico é falseabilidade, um conceito bem articulado por Karl Popper. Uma hipótese é comprovada verdadeira somente se passa os testes destinados a provar que é falsa; Assim, um teste válido deve incluir pelo menos um resultado que vai provar a hipótese falsa. Como exemplo, a maneira correta de provar a hipótese “todos os cisnes são brancos” é a busca de um cisne não-branco; contar apenas cisnes brancos não prova nada. Mesmo os cientistas às vezes caem nesta armadilha, tentando conceber testes que confirmam teorias de estimação, mas Popper diz :
Cada verdadeiro teste de uma teoria é uma tentativa de falsificá-la, ou refutá-la… É fácil obter confirmações, ou verificações, por quase toda teoria se olharmos para as confirmações. As confirmações devem contar somente se são o resultado de previsões arriscadas. |
Outra deficiência no trabalho de van Wolde é a tendência para interpretar Gênesis 1 como um livro de ciência. Essa é uma tática delicada. Um documento compreendido pelos povos antigos de Moisés a Esdras a Malaquias não poderia incorporar as teorias científicas modernas, mas se a Bíblia é sobrenaturalmente inspirada seria, no entanto, de esperar que suas grandes linhas fossem consistentes com a ciência moderna, quando corretamente interpretadas. Van Wolde se equivoca aqui.
Segundo a pesquisadora, a palavra “bara”, que aparece na frase, não significa “criar”, e sim “separar”, no sentido espacial. Deste modo, o significado original da frase seria “No início, Deus separou o Céu e a Terra”.
Wolde diz que sua análise mostra que o início da Bíblia não é o início dos tempos, e sim o início de uma narração. “A ideia da criação a partir do nada é um grande mal-entendido”, diz a pesquisadora.
As traduções mais abalizadas traduzem Gn. 1,21 como “E Deus passou a criar os grandes monstros marinhos e toda alma vivente que se move, que as águas produziram em enxames segundo as suas espécies, e toda criatura voadora alada segundo a sua espécie. E Deus pôde ver que [era] bom”. O termo “passou a criar” aqui vem do hebraico wai·yiv·rá’ (de ba·rá’). O verbo hebr. no imperfeito indica ação progressiva. É essa sutileza que muitas traduções e Van Wolde não captam. O texto hebraico está corretíssimo. A interpretação de Van Wolde está equivocada.
No Antigo Testamento, descobre-se que não é feita distinção entre a criação de Deus (bara e sua tomada (asah) no relato da criação ou em qualquer outro lugar para esse assunto. O fato é que essas palavras são usadas indistintamente em todo o Antigo Testamento, em referência ao que Deus tem feito. Em Gênesis 1-2, as palavras “criadas” (bara) e “fez” (asah) são utilizados quinze vezes em referência à obra de Deus. É claro para o leitor imparcial que estas palavras não estão em conflito uma com a outro; em vez disso, ensinam uma verdade central: que Deus criou e/ou fez o universo e tudo que nele existe.
A criação ex nihilo e por decreto divino do céu no meio da água pré-existente é contada em 1,6. A escuridão também é pré-existente, em 1,2. A luz é a primeira coisa que se relata ter sido criada ex nihilo e por decreto divino, em 1,3. Isto serve para levantar “luz” para a posição de destaque na hierarquia da criação. É difícil não pensar nisso como qualquer coisa que não seja uma declaração teológica extremamente forte com ecos em inúmeras outras passagens, por exemplo, Salmos 19 e 104.
A interpretação de Gênesis baseada em palavras ou paralelos literários em textos do Oriente Médio é um negócio arriscado; não só as palavras vêm de um tempo e lugar diferente, mas também de uma cultura diferente. O uso de uma palavra deve dominar como uma procura para discernir o significado; a origem de uma palavra não é tão relevante como a maneira em que a palavra é usada. Ao interpretar uma palavra encontrada em Gênesis, o critério mais importante é a sua utilização em Gênesis e em outra literatura mosaica.
Além de tudo, van Wolde tenta alguns argumentos baseados na linguística hebraica para justificar retraduzir bara como “separar”. No entanto, como com o uso de princípios do método científico de van Wolde, seu processo analítico em fazer estes argumentos linguísticos é falho. Trataremos disso com mais profundidade em outros artigos.