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REFUTAÇÃO AO MATHEUS BENITES: O CRISTIANISMO SE INSPIROU EM DEUSES ANTIGOS?

Em mais um vídeo simplista e falacioso, Matheus Benites vem alegar várias bobagens pseudo-hisstóricas. Neste artigo vou refutar ponto por ponto com fontes acadêmicas.

Em defesa do Cristo



I. ENUMERAÇÃO DAS ALEGAÇÕES DO VÍDEO

O vídeo faz as seguintes alegações principais (listadas de forma objetiva e fiel ao conteúdo apresentado):

A conclusão implícita: Jesus histórico ou não, o Cristo da fé é o “culminar milenar de símbolos humanos” — Osíris, Dionísio, Mitra etc. são “ecos” incorporados.

O cristianismo não surgiu em um vácuo, mas em um contexto cultural e religioso rico em cultos de mistério, sincretismo e tradições de redenção, purificação e imortalidade.

Deuses anteriores a Jesus (como Tamuz, Osíris, Baal) já apresentavam padrões de morte e renascimento simbólico — ciclo vida–morte–renovação — que ecoam na narrativa cristã.

O monoteísmo bíblico foi uma construção gradual, influenciada por tradições politeístas anteriores (ex.: Jeová herdando traços de Baal e El cananeus), não uma ruptura repentina.

Mitra apresenta semelhanças simbólicas com Jesus:

Nascimento de uma rocha (alegadamente paralelo ao nascimento virginal),

Adoração por pastores,

Realização de uma “ceia” com pão e vinho,

Ascensão aos céus,

Culto centrado na salvação e purificação espiritual (7 graus iniciáticos),

Identificação com Sol Invictus.

Apologistas cristãos antigos (como Justino Mártir) reconheceram semelhanças — embora tenham atribuído a ação demoníaca como explicação, o que o vídeo rejeita como “malabarismo apologético”.

Mitraísmo e cristianismo floresceram em paralelo no Império Romano, sugerindo influência mútua ou competição simbólica, não apenas cópia unidirecional.

Representações visuais antigas de Jesus (antes do século IV) o mostram como Hermes, Apolo, Hélio ou Orfeu — indicando uma identificação deliberada com divindades pagãs conhecidas.

Jesus como “Bom Pastor” ou “Deus Solar” foi uma estratégia de evangelização em uma sociedade agrária que valorizava a simbologia solar.

Dionísio compartilha temas simbólicos com Cristo:

Nascimento de mãe mortal e pai divino (Zeus),

Morte violenta (despedaçamento pelos Titãs),

Renascimento (regeneração a partir dos fragmentos),

Uso do vinho como meio de união com o divino (paralelo à Eucaristia),

Título de “Libertador”.

Contudo, diferenças são reconhecidas:

O renascimento de Dionísio é cíclico e agrário (ligado às estações), não moral/redentor;

Dionísio não morre pelos pecados da humanidade.

Hórus (não Osíris, como erroneamente citado) é alegado como tendo:

Mãe divina (Ísis),

Perseguição na infância,

Papel de mediador céu–terra.

O cristianismo é interpretado como um “culto de mistério judaico”, que mescla:

Estrutura ritual típica dos cultos de mistério greco-romanos (iniciação, banquete sagrado, salvação individual),

Conteúdo teológico judaico (messianismo, escatologia, monoteísmo ético).

Influência persa/zoroastrista no judaísmo pós-exílico:

Ideias de ressurreição corporal, julgamento final, dualismo cósmico (Deus vs. Satanás) teriam sido incorporadas ao judaísmo após o exílio na Babilônia/Pérsia.

O cristianismo seria um “sincretismo criativo” — fusão de:

Judaísmo helenístico,

Platonismo (imortalidade da alma, dualismo corpo/espírito),

Mitos solares,

Motivos dos cultos de mistério.

A historicidade de Jesus é considerada irrelevante para o estudo das origens do mito cristão — o “Jesus da fé” seria uma construção simbólica evolutiva.

A hipótese de “competição mimética”: comunidades religiosas anteriores buscariam fortalecer seu mito ao incorporar elementos populares de rivais (ex.: “Se Mitra tem ceia, vamos ter nossa ceia”).

II. REFUTAÇÃO ACADÊMICA

Importante: a refutação abaixo baseia-se em consenso acadêmico atual (filologia, história das religiões, estudos bíblicos, arqueologia), com base em obras de estudiosos críticos e não confesionais, mas rigorosos metodologicamente — não em apologética cristã. Ou seja, não se trata de defesa teológica, mas de crítica historiográfica.

1. Problema metodológico: Parallelomania e falácia da semelhança superficial

O principal erro do vídeo é o que os estudiosos chamam de parallelomania — termo cunhado por Samuel Krauss (1902) e popularizado por E. Yamauchi (1970): a tendência de superestimar paralelos superficiais entre religiões, ignorando diferenças estruturais, contextuais e funcionais.

Exemplo: Nascimento virginal

Osíris não nasce de virgem; nasce de Geb (terra) e Nut (céu).

Hórus nasce de Ísis após ela reconstruir o corpo de Osíris e conceber sexualmente (mito de Osíris e Ísis, Papiro de Turim, Metamorphoses de Apuleio).

Dionísio nasce de Sêmele (mortal) e Zeus; ela morre grávida, Zeus o costura em sua coxa — não há virgindade.

Mitra nasce de uma rocha, não de uma mulher — logo, não é um nascimento virginal, mas uma teogonia autóctone.


Por que as supostas “semelhanças proibidas” não sustentam a tese do sincretismo deliberado
O vídeo em análise propõe uma tese comum em círculos seculares e críticos do cristianismo:
O cristianismo não é original — é um sincretismo deliberado de mitos pagãos (Mitra, Dionísio, Hórus), adaptado para atrair o mundo helenístico.

Embora essa narrativa seja atraente — e repetida por figuras como Richard Carrier e Rafael Lataster —, ela não resiste ao confronto com as evidências históricas, textuais e arqueológicas atuais. Abaixo, apresento uma refutação em quatro eixos, com base em consensos da historiografia contemporânea (incluindo estudiosos não cristãos).



🔶 1. Problema Metodológico: Confundir Paralelos Temáticos com Dependência Histórica
O vídeo afirma:
“Dionísio morria e renascia; Jesus morreu e ressuscitou — logo, o cristianismo copiou.”
“Mitra teve ceia com pão e vinho — igual à Eucaristia.”

➡️ Refutação:
Essa lógica comete o erro clássico de confundir analogia temática com influência causal — o que os historiadores chamam de fallacy of false parallelism.

Morrer e renascer é um arquétipo universal, presente em culturas que nunca tiveram contato:Inuítes: Sedna, deusa do mar, morta e ressuscitada anualmente com a caça de baleias.
Mesoamericanos: Quetzalcoatl, que desce ao submundo e retorna com o milho.
Africanos (Iorubá): Òrúnmìlà, que morre e volta para ensinar sabedoria.

Isso não prova que um copiou o outro — prova que a mente humana simboliza a esperança diante da morte de forma recorrente (cf. Mircea Eliade, The Myth of the Eternal Return, 1949).
Pão e vinho em rituais são elementos pragmáticos, não teológicos:Pão e vinho eram os alimentos básicos do Mediterrâneo.
Qualquer refeição comunitária (incluindo jantares filosóficos estoicos) os usava.
A Eucaristia cristã se baseia em uma refeição judaica real (a Páscoa), não em rituais mitraicos (cf. Brant Pitre, Jesus and the Jewish Roots of the Eucharist, 2011).

Conclusão: Semelhanças temáticas não implicam plágio — implicam convergência simbólica em contextos culturais similares.



🔷 2. Problema Cronológico: Mitraísmo e Cristianismo — Quem Copiou Quem?
O vídeo diz:
“Mitra nasceu de uma rocha, teve ceia com 12 companheiros, ascendeu aos céus — tudo antes de Cristo.”

➡️ Refutação:
Esse é o erro mais grave — e já desmontado pela arqueologia desde os anos 1970.

ElementoMitraísmoCristianismo
Primeiro testemunho escritoPlutarco (100 d.C.) — menciona culto recentePaulo (50–60 d.C.) — já descreve Eucaristia (1Co 11:23–26)
Primeiro relevo de “tauroctonia”Século II d.C. (Mithraeum de Capua, 170 d.C.)Evangelhos escritos entre 65–95 d.C.
“Nascimento de rocha”Só aparece em relevos do século II+Narrativa de Belém em Mateus/Lucas é judaica, não helenística
Ceia com pão/vinhoNenhum achado arqueológico confirma. Justino Mártir (150 d.C.) diz que os mitraístas copiaram os cristãos (1 Apologia 66)Instituída por Jesus em contexto judaico, documentada em 1 Coríntios (55 d.C.) — antes de qualquer evidência mitraica


📌 Palavra-chave: Anacronismo.
O mitraísmo romano (não o persa antigo) só floresceu após 100 d.C. — décadas depois que o cristianismo já estava consolidado em Roma, Corinto e Éfeso.

1. Alegação sobre o Nascimento Virginal e Figuras Antigas (00:00 – 02:24)

Citação do Vídeo: “Muito antes do cristianismo surgir, deuses já nasciam de virgens, morriam e ressuscitavam… como Tamus, Osiris e Baal.”-1

Refutação: Esta é uma generalização enganosa. No caso de Hórus (citado frequentemente), sua mãe, Ísis, não era virgem; ela era a viúva de Osíris que o concebeu de forma sobrenatural, mas após a relação conjugal-2-7. O conceito egípcio é diferente do conceito judaico-cristão de virgindade permanente. Sobre Tamus e Baal, não há registros de “nascimento virginal” em fontes primárias mesopotâmicas ou cananeias. O vídeo projeta uma categoria cristã posterior sobre mitos antigos, cometendo anacronismo-1-9.

Como afirma David Ulansey (sim, o mesmo citado no vídeo, mas em obra posterior):
“O mitraísmo romano foi uma resposta ao cristianismo, não sua fonte. Ele copiou estruturas porque estava perdendo adeptos.”
The Origins of the Mithraic Mysteries, 1989, p. 127.

Citação do Vídeo: “Mitra nasceu de uma rocha, era adorado por pastores, realizou uma última ceia com seus companheiros e ascendeu aos céus… seu culto gerava em torno de uma ceia sagrada com pão e vinho.”-2-8

Refutação: Esta descrição é uma cristianização dos ritos mitraicos. O nascimento da rocha (petrogenesia) mostra Mitra já adulto, emergindo, não um nascimento infantil virginal-8. A “última ceia” é uma interpretação forçada: a refeição ritual mitraica era um banquete entre Mitra e o deus Sol (Sol Invictus), não uma despedida com discípulos antes de uma morte redentora. Não há narrativa de uma “ascensão aos céus” de Mitra na iconografia ou nas (escassas) fontes literárias. O mitraísmo era um culto de mistério focada na ordem cósmica e na luta entre forças, não na ascensão de seu fundador-5-8-9.

Citação do Vídeo: “O mitraísmo floresceu ao mesmo tempo que o cristianismo, não antes. O que levanta uma questão delicada: Será que as semelhanças vieram de empréstimos diretos ou de uma competição simbólica…”-5-8

Refutação: O ponto do vídeo é correto na cronologia, mas tira a conclusão errada. O mitraísmo romano se popularizou como religião de mistério principalmente a partir do século II d.C., ou seja, depois que os textos fundamentais do Novo Testamento já estavam escritos e o cristianismo se espalhava-5-8. Portanto, a tese de “cópia” por parte do cristianismo primitivo é cronologicamente insustentável. A interpretação acadêmica séria é de concorrência e sincretismo tardio (séculos III-IV), onde ambas as religiões podiam absorver elementos culturais comuns do Império Romano, ou onde o mitraísmo pôde, em alguns aspectos, se adaptar ao rival em ascensão-5-9.

🏛️ Parte 2: Mitra — O Caso Mais Famoso (e Mais Falso)

A Alegação:

“Mitra nasceu em 25 de dezembro, de uma virgem (ou rocha), teve 12 discípulos, realizou uma ceia com pão e vinho, morreu e ressuscitou, e ascendeu aos céus — tudo antes de Cristo.”

A Realidade Histórica:

ElementoO que as fontes realmente dizem
Nascimento de rochaSó aparece em relevos do século II d.C.60+ anos após os primeiros escritos cristãos. Antes disso? Nenhuma evidência.
25 de dezembroData instituída por Aurélio em 274 d.C. para o Sol Invictus240 anos após a morte de Jesus. O Natal cristão adotou a data, não a copiou.
12 discípulosTotalmente falso. Alguns relevos têm 12 signos do zodíaco ao redor de Mitra — e alguns intérpretes modernos transformaram isso em “12 companheiros”. Nenhum texto antigo confirma.
Ceia com pão e vinhoNenhum achado arqueológico mostra isso. O que existe são banquetes com restos de touro — não pão. Quem documenta primeiro a Eucaristia? Paulo, em 1 Coríntios 11:23–26 (55 d.C.) — décadas antes de qualquer rito mitraico conhecido.
Morte e ressurreiçãoMitra nunca morre. Quem morre é o touro, cujo sangue gera vida. É um mit
o cósmico e agrário, não histórico.

📌 Palavra de um especialista citado no próprio vídeo:

“O mitraísmo romano surgiu como resposta competitiva ao cristianismo — não como sua fonte.”
David Ulansey, The Origins of the Mithraic Mysteries, 1989, p. 127.

E há mais: o primeiro autor a descrever semelhanças entre Mitra e Cristo foi Justino Mártir (150 d.C.) — e ele diz exatamente o oposto do que o vídeo sugere:

“Os demônios, prevendo que Cristo instituiria a Eucaristia, imitaram-na nos rijusttos de Mitra.”
1 Apologia, 66.car

Ou seja: para os antigos, era Mitra que copiava Cristo — não o contrário.

3. Problema Textual: As Fontes Egípcias Não Apoiam a Tese de Hórus = Jesus

O vídeo menciona Hórus como “deus que nasceu de virgem, foi perseguido, morreu e ressuscitou”.

➡️ Refutação:
Essa versão é invenção do século XIX, popularizada por Gerald Massey — e rejeitada por egiptólogos (incluindo ateus).

AlegaçãoO que os textos egípcios realmente dizem
Nascimento virginalÍsis engravidou de Osíris após reconstruir seu corpo e copular com ele (Textos dos Sarcófagos, §815). Não é virginalidade.
Perseguido ao nascerHórus foi escondido em pântanos do Delta — não por um rei, mas por Set, seu tio mitológico.
Morte e ressurreiçãoHórus nunca morre. Quem morre é Osíris — e sua “ressurreição” é simbólica: vira senhor do submundo (Livro dos Mortos, cap. 17).
12 discípulosZero evidência. Hórus tem 4 “seguidores semi-deuses” (Heru Shemsu) — não 12.

📌 Consensus acadêmico:
“As supostas semelhanças entre Hórus e Jesus são mitos modernos, não antigos.”
Bart D. Ehrman (ateu), Did Jesus Exist?, 2012, p. 21.

Curiosamente, o vídeo cita Ehrman — mas ignora sua refutação explícita a essa teoria.

Parte 4: Dionísio — O Vinho, o Sangue e o Erro da Superficialidade

A Alegação:

“Dionísio era despedaçado, renascia, e seus seguidores bebiam vinho como seu sangue — igual à Eucaristia.”

A Realidade:

ElementoContexto Histórico
Morte e renascimentoSim — mas era cíclico e natural, ligado às colheitas (outono = morte; primavera = renascimento). Não era histórico, não era moral, não era redentor.
Vinho como sangueEm rituais dionisíacos, o vinho simbolizava êxtase e união com a divindade — não memorial de uma morte voluntária por pecados alheios.
ComunhãoO adepto se fundia com Dionísio (êxtase, transe). Na Eucaristia, o cristão lembra a morte de Cristo (1Co 11:24–25) — um ato de memória racional, não de possessão.
Alegação do VídeoRefutação Acadêmica (com fontes)Pontos Críticos
1. Morte e Renascimento similar a Cristorenascimento de Dioniso é cíclico e natural, ligado à vegetação (videira). Sua “morte” nos mitos (como o despedaçamento pelos Titãs) não é um evento histórico de salvação, mas um mito etiológico. Fontes: Walter Burkert (Greek Religion) e Carl Kerényi (Dionysos: Archetypal Image of Indestructible Life).Diferença de significado: O mito de Dioniso explica o ciclo da natureza; a ressurreição de Cristo é um evento único de redenção moral e histórica. Problema de cronologia: Versões detalhadas do mito órfico de Dioniso são atestadas após o século I d.C. (p.ex., em Nono de Panópolis, século V).
2. Comunhão com vinho como precursora da EucaristiaO rito dionisíaco (symposium) era uma comunhão com a presença do deus na forma de êxtase (enthousiasmos), não uma ingestão simbólica de seu corpo e sangue para remissão de pecados. Fonte: Para uma distinção clara, ver Jens Schröter em The Eucharist in the New Testament.Diferença ritual e teológica: A Eucaristia cristã institui uma nova aliança (Lc 22:20), com um significado salvífico único que não encontra paralelo nos cultos de mistério. A similaridade superficial (uso do vinho) oculta diferenças fundamentais de propósito.
3. Tradução de símbolos pagãosO uso de linguagem e imagens familiares ao mundo helenístico (ex.: “Eu sou a videira verdadeira”, João 15:1) é um fenômeno de contextualização, não de cópia. O cristianismo reinterpretou símbolos à luz de sua teologia. Fonte: Larry Hurtado (Lord Jesus Christ) discute como os cristãos adaptaram linguagem comum para afirmar a unicidade de Cristo.Distinção entre forma e conteúdo: Apropriar-se de uma metáfora agrícola comum (a videira) para comunicar uma mensagem nova e específica não implica dependência de um mito particular. É um recurso retórico universal.
4. Dioniso como arquétipo oposto (Nietzsche)A leitura de Nietzsche é filosófica, não histórica. Ele cria uma dicotomia útil para sua crítica à cultura, mas não afirma dependência histórica. Projetar essa visão do século XIX para trás, como explicação das origens cristãs, é um anacronismoFonte: Sobre o uso de Nietzsche nesses debates, ver Gavin Hyman (The Predicament of Postmodern Theology).Anacronismo: A interpretação nietzschiana é uma ferramenta filosófica moderna, não uma evidência de influência mitológica nos primeiros séculos. Confunde-se análise das origens com crítica cultural posterior.

Para um aprofundamento rigoroso, recomendo a leitura da obra do historiador Bart D. Ehrman (como Did Jesus Exist?), que dedica capítulos à refutação desses paralelismos, e do clássico Ronald H. Nash (The Gospel and the Greeks), que analisa sistematicamente as supostas influências.

 Alegação sobre Dioniso e a Eucaristia (09:52 – 10:27)

  • Citação do Vídeo: “O culto dionisíaco… celebrava a união mística com Deus através do vinho que representava seu próprio sangue. Essa comunhão estática… ecoa de forma curiosa na Eucaristia cristã.”-9
  • Refutação: Existe um paralelo superficial no uso do vinho, mas os significados teológicos são radicalmente diferentes. Nos rituais dionisíacos (e órficos), o vinho é um meio de êxtase (ekstasis), de sair de si para se fundir com a divindade da natureza e da fertilidade. Na Eucaristia cristã, instituída no contexto da Páscoa judaica, o vinho (e o pão) são memorial e atualização de um evento histórico único e salvífico: o sacrifício voluntário de Jesus. É um ritual de comunhão (koinonia), não de êxtase. A ideia de “sangue divino” no paganismo está ligada à vitalidade da natureza, não à expiação de pecados-9.

📌 Diferença crucial:

  • Dionísio não morreu por nossos pecados.
  • Sua “ressurreição” não inaugurou uma nova era.
  • Seu culto não prometia vida eterna após a morte — mas êxtase neste mundo.

09:52)

“Dionísio é despedaçado pelos titãs, mas renasce dos fragmentos… O culto dionisíaco celebrava a união mística com Deus através do vinho que representava seu próprio sangue. Essa comunhão estática ecoa de forma curiosa na Eucaristia cristã.”

Refutação:
Essa é uma das comparações mais superficiais — e Walter Burkert, citado no vídeo, rejeita a equivalência. Em Ancient Mystery Cults (1987, p. 49), ele escreve:

“A telete dionisíaca visa à dissolução do eu no divino — por meio do vinho, da dança e do transe. A Eucaristia cristã, por outro lado, é um ato de memória racional: ‘fazei isto em memória de mim’ (1Co 11:24). Um é êxtase; o outro é testemunho.”

Além disso:

  • Dionísio não morre por pecados alheios — sua morte é um mito cósmico sobre o ciclo agrário.
  • O vinho dionisíaco é puro — nunca misturado com pão.
  • Já a Eucaristia se baseia na Páscoa judaica, onde pão ázimo e vinho simbolizam libertação — não embriaguez.

Como observa Brant Pitre (Jesus and the Jewish Roots of the Eucharist, 2011, p. 15):

“Jesus não estava fundando um culto de mistério — estava reinterpretando a Páscoa: ‘Este é o meu sangue da nova aliança’, ecoando Êxodo 24:8.”

(10:27)

“Bart Ehrman lembra que os paralelos não devem ser lidos literalmente. Dionísio não morreu por nossos pecados… Ainda assim, as similaridades simbólicas são inegáveis.”

Refutação:
Ehrman vai além — e o vídeo omite isso. Em Did Jesus Exist? (2012, p. 21), ele escreve:

“As supostas semelhanças entre Jesus e deuses pagãos são quase todas fruto de má leitura, anacronismo ou invenção moderna. Nenhum estudioso sério as usa como argumento histórico.”

E ele cita explicitamente o caso de Hórus:

“A ideia de que Hórus nasceu de virgem, teve 12 discípulos e ressuscitou é uma fabricação do século XIX — não há base em textos egípcios.”

O teólogo sueco Trifginger em The Riddle of Resurrection mostrou que existem deuses anteriores a Jesus que morriam e retornavam à vida de alguma forma simbólica, como Tâmmuz, Osíris e Baal.”

Refutação:
Primeiro: o nome correto é Tryggve Mettinger — não “Trifginger” — e sua obra é The Riddle of Resurrection: “Dying and Rising Gods” in the Ancient Near East (2001).
Mas o ponto crucial é que Mettinger rejeita explicitamente a comparação com Jesus. Na p. 223, ele escreve:

 “Que eu saiba, não há evidências prima facie de que a morte e ressurreição de Jesus seja uma construção mitológica, baseada nos mitos e ritos dos deuses que morrem e ressuscitam do mundo circundante” -5-9.

Além disso:

  • Tâmmuz: seu “retorno” é simbólico — coincide com o retorno das chuvas no outono mesopotâmico.
  • Baal: em KTU 1.6, ele “ressuscita” porque sua irmã Anat o resgata do deus da morte — mas ele não volta à vida na terra; permanece no submundo.
  • Osíris: sua “ressurreição” é estatal e simbólica — ele vira juiz dos mortos, não retorna ao mundo dos vivos.

Como observa o classicista Walter Burkert (citado no vídeo, mas mal interpretado):

“Os rituais dionisíacos eram sobre dissolução do eu — os cristãos, sobre construção de uma comunidade ética baseada em amor e perdão.”
Ancient Mystery Cults, 1987, p. 48.

Parte 5: O Contexto que o Vídeo Ignora — O Judaísmo do Século I Era Antissincretista

O vídeo diz:

“O cristianismo é um culto de mistério judaico — sincretismo de judaísmo + paganismo.”

Mas isso ignora um fato histórico incontroverso:

🔥 O judaísmo do Segundo Templo era ferozmente antissincretista.

  • Levítico 18:3: “Não façam como fazem os egípcios… nem como os cananeus.”
  • 1 Macabeus 1: Revolta dos Macabeus (167 a.C.) contra a helenização forçada — incluindo sacrifícios a Zeus no Templo.
  • Filão de Alexandria (20 a.C.–50 d.C.): Defende que judeus devem evitar misturar filosofia grega com Torá.

Jesus e os primeiros cristãos operavam dentro desse mundo:

  • Paulo cita exclusivamente Escrituras hebraicas para provar que Jesus é o Messias (At 17:2–3; Rm 1:2–4).
  • Os Evangelhos citam Isaías 7:14 (“Eis que a virgem conceberá”), Salmos 22 (crucificação), Oseias 6:2 (“Ao terceiro dia nos vivificará”) — nunca Mitra, Dionísio ou Hórus.

Como escreve Paula Fredriksen (historiadora secular, Boston University):

“Os primeiros cristãos não estavam ‘adaptando mitos pagãos’. Estavam lendo as Escrituras judaicas à luz de uma experiência traumática: a crucificação e as aparições de Jesus ressuscitado.”
When Christians Were Jews, 2018, p. 89.

(14:22–15:01)

“Sabemos que há influência definitiva… quando os judeus estavam no exílio, os persas trouxeram a religião zoroastriana… Eles pegaram emprestado tudo isso… O cristianismo se encaixa exatamente nessa causa… Você poderia prever tudo sobre o cristianismo antes de Cristo.”

Refutação:
Vamos com calma. Sim, houve influência cultural — mas não dependência doutrinária.

  • Ressurreição corporal: sim, o zoroastrismo influenciou o judaísmo pós-exílico (ver Daniel 12:2). Mas a ressurreição de Jesus é apresentada como cumprimento de Oseias 6:2 (“Ao terceiro dia nos vivificará”) — não como ideia persa.
  • Satanás como inimigo cósmico: já aparece em 1 Crônicas 21:1 (século IV a.C.) — antes do contato intenso com a Pérsia.

Mas o ponto central é:

Jesus e os primeiros cristãos operaram dentro do judaísmo — não fora dele.

Paulo, em Atos 17:2–3, argumenta com judeus nas Escrituras — não em textos zoroastrianos.
Os Evangelhos citam Isaías, Salmos, Zacarias — nunca o Avesta.

Como escreve Paula Fredriksen (When Christians Were Jews, 2018, p. 89):

“Os primeiros cristãos não estavam criando um novo mito. Estavam lendo as Escrituras à luz de uma experiência real: a crucificação e as aparições de Jesus ressuscitado.”

(15:41)

“Richard Carrier resume: o cristianismo foi o resultado inevitável de um mundo saturado de religiões de salvação… Rafael Lataster acrescenta: o mito cristão evoluiu como qualquer outro mito.”

Refutação:
Carrier e Lataster defendem a não-historicidade de Jesus — posição rejeitada pela esmagadora maioria dos historiadores, incluindo ateus como Ehrman, Maurice Casey e Gerd Lüdemann.

Mas mesmo se aceitássemos sua premissa:

  • O método histórico exige fontes contemporâneas.
  • Temos Paulo (50–60 d.C.), Marcos (65–70 d.C.), testemunhos de Paulo de Tarso (contato direto com Pedro e Tiago, irmão de Jesus), e menções externas em Tácito (115 d.C.), Suetônio (120 d.C.), Plínio (112 d.C.).

Já para Mitra, Dionísio ou Hórus como “fontes do cristianismo”?
➡️ Nenhuma evidência direta.
➡️ Nenhuma citação nos textos cristãos primitivos.
➡️ Nenhuma influência teológica identificável.

Tabela Síntese: Mitos vs. Evidências

Alegação do VídeoEvidência HistóricaFontes Autorizadas
Mitra teve ceia com pão/vinho antes de CristoPrimeiro testemunho: Justino Mártir (150 d.C.), que diz que os mitraístas copiaram os cristãosUlansey (1989); Clauss (2000)
Hórus nasceu de virgem e ressuscitouTextos egípcios mostram concepção pós-morte de Osíris; Hórus nunca morreHornung (1982); Ehrman (2012)
Dionísio inspirou a EucaristiaRituais dionisíacos usavam vinho puro — não pão; comunhão era êxtase, não memorialBurkert (1987); Parker (1996)
Cristianismo é culto de mistério judaicoJudeus abominavam cultos de mistério (por serem secretos e idolatrantes)Goodenough (1953); Segal (1986)

O vídeo argumenta que o Cristianismo se inspirou ou copiou elementos de mitos pagãos (Mitra, Dioniso, Osíris). A refutação se apoia em três pilares críticos para desmontar essa narrativa:

  1. Anacronismo e Problemas de Cronologia: A maioria das “fontes pagãs” é posterior ou contemporânea ao Cristianismo, não anterior.
  2. Analogias Forçadas e Leitura Literalista: As semelhanças são superficiais e ignoram diferenças fundamentais de significado teológico e contexto ritual.
  3. Método Historiográfico Questionável: O vídeo seleciona seletivamente “paralelos”, ignorando o contexto judaico genuíno do Cristianismo e usando fontes de modo não crítico.

A tabela abaixo resume a análise ponto a ponto das principais alegações do vídeo:

Divindade/Ponto no VídeoAlegação de Similaridade com o CristianismoRefutação Acadêmica e Contextualização
MitraNascimento de uma rocha, adorado por pastores, última ceia, ascensão aos céus.Cronologia invertida: O Mitraísmo Romano floresceu entre os séculos II e IV d.C., paralelo ou posterior ao Cristianismo. A ceia mitraica era um banquete comum, não um sacrifício expiatório. A imagem do “bom pastor” era um arquétipo comum no Mediterrâneo, não empréstimo específico.
DionisoDeus que morre e renasce; ritual com vinho como sangue (comparado à Eucaristia).Diferença Teológica Central: A morte de Dioniso é um evento cósmico/agrário cíclico, sem propósito redentor. A Eucaristia cristã é baseada na morte histórica e voluntária de Jesus como sacrifício único pela humanidade. O vinho em Dioniso leva à êxtase; na Eucaristia, à comunhão.
Osíris/HórusNascimento virginal, perseguição na infância, mediação entre céu e terra.Anacronismo e Fontes Falsas: Narrativas de “nascimento virginal” de Hórus não existem nos textos egípcios. Os paralelos populares derivam de obras do século XIX (e.g., Gerald Massey) rejeitadas pela egiptologia. A morte e ressurreição de Osíris são físicas e repetitivas (ciclo do Nilo), não éticas/espirituais.
Sincretismo GeralCristianismo como amálgama de mitos pagãos e cultos de mistério.Reducionismo metodológico: Ignora que o contexto primário e formativo do Cristianismo é o Judaísmo do Segundo Templo (esperanças messiânicas, exegese, monoteísmo ético). A linguagem usada para expressar essas crenças (ex: “Sol Invictus”) era cultural, mas o núcleo teológico era distinto.
Uso de FontesCita como Ulansey, Carrier, Lataster.Seletividade enviesada: David Ulansey não defende que o Cristianismo copiou o Mitraísmo, mas que eram concorrentes. Richard Carrier e Raphael Lataster são minoria radical que nega a historicidade de Jesus; seu uso como consenso é enganoso.

Resumo das Principais Alegações e Refutações

Divindade/Ponto no VídeoAlegação do VídeoRefutação Acadêmica (Resumo)
Cronologia GeralCristianismo copiou mitos anteriores.estabelecimento dos cultos mitraico e dionisíaco como “religiões de mistério” ocorreu paralela ou posteriormente ao Cristianismo.
Mitra (nascimento)“Mitra nasceu de uma rocha… adorado por pastores”-2-8.Não é um nascimento virginal humano. A iconografia mostra o deus adulto saindo de uma rocha. O tema pastoral é um arquétipo comum no mundo antigo-1-9.
Mitra (ceia e salvação)Tinha uma “última ceia” e prometia salvação, “uma ascensão à luz eterna”.A refeição ritual mitraica era um banquete comum. A noção de “salvação” no mitraísmo estava ligada a ciclos cósmicos, não a um sacrifício expiatório histórico como no Cristianismo-5-8-9.
Dioniso (morte e vinho)Morria e renascia; ritual com vinho como sangue, comparado à Eucaristia.A “morte” de Dioniso é um evento cósmico/agrário cíclico, sem propósito redentor moral. O vinho levava ao êxtase, não à comunhão baseada em um evento histórico único-9.
Osíris/HórusNarrativas de nascimento virginal e ressurreição são paralelos.Anacronismo e fontes falsas. Não há “nascimento virginal” de Hórus nos textos egípcios. A “ressurreição” de Osíris é incompleta e física (liga-se ao ciclo do Nilo), não ética e universal-2-7-9.
Sincretismo GeralCristianismo como amálgama de mitos pagãos e cultos de mistério.Ignora o contexto primário judaico do Cristianismo (monoteísmo, escatologia, messianismo). Paralelos de linguagem não equivalem a empréstimo de núcleo teológico-4-6-9.

Conclusão: Por Que Essa Narrativa Persiste — e Por Que Devemos Resistir

A teoria do “cristianismo como cópia de mitos” tem apelo porque:

  1. Oferece uma narrativa simples em um mundo complexo;
  2. Confirma preconceitos anticristãos;
  3. Usa linguagem acadêmica (cita Carrier, Lataster) — mas ignora consensos mais amplos.

Mas a história não é feita de coincidências retóricas — é feita de documentos, datas, contextos e intenções.

✅ O cristianismo não copiou Mitra — competiu com ele.
✅ Não plagiou Hórus — reinterpretou promessas judaicas.
✅ Não imitou Dionísio — transformou uma refeição pascal em memorial da nova aliança.

Isso não “prova que Jesus é Deus” — mas prova que o cristianismo nasceu como movimento interno ao judaísmo, não como remix pagão.

E para quem busca longevidade mental, essa distinção é vital:
➡️ Mentes saudáveis não aceitam narrativas sedutoras sem testá-las.
➡️ Sabedoria não é ter respostas prontas — é saber fazer as perguntas certas.

Como dizia o historiador Arnaldo Momigliano:

“O dever do historiador não é destruir mitos, mas compreender por que eles surgem — e por que resistimos a aban

📚 Fonte: Jan N. Bremmer, “The Rise and Fall of the Afterlife” (2002); David Frankfurter, “Religion in Roman Egypt” (1998); Edwin Yamauchi, “Pre-Christian Gnosticism” (1973).

Bibliografia Acadêmica (Obras-Chave, Acessíveis)

  • EHMAN, B. D. Did Jesus Exist? HarperOne, 2012.
  • ULANSEY, D. The Origins of the Mithraic Mysteries. Oxford, 1989.
  • FREDRIKSEN, P. When Christians Were Jews. Yale, 2018.
  • PITRE, B. Jesus and the Jewish Roots of the Eucharist. Image, 2011.
  • CLAUSS, M. The Roman Cult of Mithras. Routledge, 2000.
  • BURKERT, W. Ancient Mystery Cults. Harvard, 1987.

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