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Refutação ao Edson Toshio sobre o Argumento Kalam

Mais uma vez o palpiteiro pseudo-pensador ateísta Edson Toshio vem mostrar sua desinformação, desta vez sobre o Argumento Cosmológico Kalam.

Introdução: A natureza da objeção

O vídeo em questão apresenta uma crítica ao Argumento Cosmológico Kalam com base em duas teses centrais:

  1. O argumento é “islâmico”, não cristão — sugerindo dependência histórica e, por implicação, fragilidade racional;
  2. Deus (YHWH) “começou a existir” — pois só aparece na história humana ~3.000 anos atrás, e evoluiu de um deus tribal secundário para o Deus único do monoteísmo tardio.

Dessas teses, conclui-se que:

“Se Deus começou a existir, então o próprio Kalam o condena — pois tudo que começa a existir tem uma causa.”

Essa objeção, embora popular em círculos céticos, comete três erros fundamentais:
Confunde a história das ideias religiosas com a história da realidade metafísica;
Equívoca a emergência de uma concepção teológica com a origem do objeto referido;
Ignora a distinção lógica entre referência e concepção — um erro clássico em filosofia da linguagem.

Analisemos cada ponto.


I. O Kalam não é “islâmico” — é uma formalização de uma intuição metafísica universal

A objeção começa afirmando: “O argumento é de Kalam e é mais dos islâmicos, né? E aí depois os cristãos pegaram.”
Isso é historicamente impreciso e filosoficamente irrelevante.

(a) Historicamente:

  • A intuição central do Kalam“o que começa a existir tem uma causa” — é pré-filosófica, encontrada em culturas globais (ex: mitos da criação em todas as civilizações antigas).
  • Aristóteles (séc. IV a.C.) já argumentava pela necessidade de uma Causa Primeira não-causada (Metafísica, Λ.6).
  • João Filopono (séc. VI d.C.), cristão alexandrino, foi o primeiro a argumentar contra a eternidade do mundo — baseando-se na impossibilidade de um passado infinito — séculos antes dos mutakalimūn islâmicos.
  • Al-Ghazālī (séc. XI) popularizou a versão islâmica, mas não a inventou.

Ou seja: o Kalam é uma formalização lógica de um raciocínio intuitivo — não uma doutrina “emprestada”.

(b) Filosoficamente:

A validade de um argumento não depende de sua origem, mas de sua forma lógica e verdade das premissas (falácia genética).
Se o modus ponens foi usado por gregos, árabes e indianos, isso não o invalida — apenas mostra que a lógica é universal.

“A verdade não é propriedade de nenhuma tradição. É descoberta por quem a busca com rigor.”
William Lane Craig, Reasonable Faith, p. 116


II. A emergência de uma ideia sobre Deus não implica que Deus começou a existir

A objeção central é:

“A gente só tem evidência de culto há 10.000 anos… Deus não fez nada por 290.000 anos… Seu Deus foi criado… então ele começou a existir.”

Essa inferência comete o erro categorial de confundir epistemologia com ontologia:

  • Epistemologia: quando os humanos começaram a ter conhecimento/concepção de Deus;
  • Ontologia: quando Deus, como ser real, começou a existir.

São domínios distintos.

Analogia clara:

A ideia de micro-organismos só surgiu no século XVII (Leeuwenhoek). Seria absurdo concluir:

“Então as bactérias começaram a existir no século XVII.”

Da mesma forma:

  • Os seres humanos descobriram a gravidade com Newton, mas a gravidade existia desde o Big Bang.
  • A concepção de YHWH evoluiu historicamente — mas isso não prova que YHWH como ser real tenha surgido no século XII a.C.

A objeção assume, sem justificar, que Deus só existe se for concebido corretamente pelos humanos — uma forma de idealismo subjetivo, rejeitado pela maioria dos metafísicos.


III. A evolução da teologia israelita não implica politeísmo ontológico

O vídeo cita:

  • YHWH como deus tribal de Edom;
  • El Elyon como “deus altíssimo” que reparte nações entre “filhos de Deus” (Dt 32:8–9, texto dos Manuscritos do Mar Morto);
  • Aserá como “esposa” de YHWH.

Daí conclui: “Seu Deus foi criado.”

Mas isso confunde desenvolvimento teológico com falsidade ontológica.

(a) O que os estudiosos dizem:

  • A maioria dos historiadores (ex: Mark S. Smith, The Early History of God; Francesca Stavrakopoulou, God: An Anatomy) concorda que o monoteísmo israelita foi um processo, não um evento.
  • Porém, nenhum deles conclui que Deus “começou a existir” — apenas que a compreensão humana evoluiu.
  • A redação de Dt 32:8 nos Manuscritos do Mar Morto (com “bene elohim” = “filhos de Deus”) reflete uma etapa na teologia israelita, não uma “prova” de que YHWH era um deus entre outros na realidade.

(b) Distinção crucial: referência vs. concepção

  • Quando um israelita do século X a.C. orava a YHWH como “deus da tempestade”, ele referia-se ao mesmo ser que o profeta Isaías (séc. VIII a.C.) chamou de “Criador dos céus e da terra” (Is 42:5) — ainda que com uma concepção limitada.
  • Filósofos como Saul Kripke (Naming and Necessity) mostraram que nomes próprios referem diretamente a objetos, mesmo com descrições incompletas ou falsas.
    → Ex: os gregos chamavam Vênus de “Héspero” à noite e “Fósforo” de manhã — sem saber que era o mesmo astro. Mas referiam-se ao mesmo planeta.

Logo:

  • Mesmo que os israelitas antigos tivessem uma concepção politeísta, isso não implica que YHWH não fosse, de fato, o único Deus real — do mesmo modo que os gregos estavam errados sobre Héspero e Fósforo, mas certos sobre a existência do planeta.

IV. O Kalam aplica-se ao universo, não a Deus — e por boas razões

O vídeo sugere ironicamente: “Se Deus começou a existir, então o Kalam o condena.”
Mas isso ignora a estrutura lógica do argumento:

1. Tudo que começa a existir tem uma causa.
2. O universo começou a existir.
3. Logo, o universo tem uma causa.

A premissa (1) não diz que tudo tem uma causa, mas que tudo que começa a existir tem uma causa.
→ Um ser eterno, necessário e imaterial — como o defendido no Kalamnão começa a existir, logo não precisa de causa.

E a ciência moderna corrobora a premissa (2):

  • O modelo padrão cosmológico (Big Bang) implica um início temporal finito (~13,8 bilhões de anos);
  • O teorema de Borde-Guth-Vilenkin (2003) prova que qualquer universo que se expanda em média no passado deve ter um limite inicial — independentemente do modelo físico.

Portanto, o Kalam não é “para fracos”. É um argumento que reúne lógica, metafísica e cosmologia contemporânea — e cujas premissas são mais plausíveis do que suas negações.

O vídeo em questão apresenta uma crítica ao argumento cosmológico kalam centrada numa suposta incoerência entre os atributos divinos de atemporalidade, imutabilidade e ação criadora — particularmente, alega-se que:

  1. Causação exige temporalidade (sequência antes–durante–depois);
  2. Decisão ou pensamento pressupõem mudança;
  3. Personalidade implica passividade (ser “afetado”);
  4. Logo, um ser atemporal, imutável e pessoal é logicamente impossível.

Essa objeção, embora intuitivamente apelativa, comete três erros fundamentais:
confunde causalidade com sucessão temporal;
projeta categorias de agência dentro do tempo sobre uma agência fora do tempo;
equivoca “mudança” com “diferenciação intrínseca”.

Analisemos cada ponto com rigor filosófico.


I. A causalidade não pressupõe temporalidade — ela pressupõe assimetria ontológica

Um dos pressupostos centrais do vídeo — de que “para ter causa, obrigatoriamente tem que ter tempo” — é falso. Não há nada na lógica da causalidade que exija temporalidade. O que a causalidade exige é assimetria de dependência ontológica: o efeito depende da causa para existir; a causa não depende do efeito.

Há, na metafísica contemporânea, dois modelos amplamente discutidos de causalidade atemporal:

(a) Causalidade de tipo sustentacional (sustaining causation)

Exemplo: um objeto suspenso por um fio. O fio causa a não-queda agora, não “antes”. A causalidade é simultânea ao efeito.
→ Analogamente, Deus pode causar a existência do universo concomitantemente à sua própria decisão eterna — não “antes” do tempo, mas fora do tempo, como sua condição de possibilidade.

(b) Causação de tipo lógico (logical priority without temporal priority)

Em lógica, temos:

  • Premissa ⇒ Conclusão
    A conclusão depende da premissa, mas não ocorre depois dela. A relação é de prioridade lógica, não cronológica.
    → Do mesmo modo, o universo pode ser logicamente posterior a Deus, sem ser temporalmente posterior. A criação é um ato de razão suficiente, não de sucessão temporal.

Conclusão parcial: A objeção comete a falácia do anacronismo metafísico — impor à realidade última as categorias de espaço-tempo que, segundo o próprio kalam, só emergem com o universo.


II. A “decisão divina” não implica mudança — ela é eternamente simples

A objeção afirma: “Se ele decide fazer alguma coisa, então ele já tá mudando… tem que ter antes, durante e depois do pensamento.”
Isso pressupõe que toda volição exige processo — o que é verdadeiro para agentes temporais, mas não para um agente atemporal.

Na tradição tomista (desenvolvida por Brian Leftow, Eleonore Stump e mais recentemente por David Oderberg), a vontade divina é:

  • Ativa, não passiva;
  • Simples, não sequencial;
  • Eternamente atual, não potencial.

Deus não passa de “não querer criar” para “querer criar” — pois isso exigiria mudança e potencialidade, incompatíveis com a perfeição absoluta (actus purus). Em vez disso, a vontade criadora é uma única determinação eterna, cujo conteúdo inclui a criação temporal.

“Deus quer criar um mundo com uma história temporal — e essa vontade é uma só, imutável, eterna.”
Brian Leftow, Time and Eternity (2009), p. 88

Analogia útil (usada por Craig):
Imagine um escritor que, desde toda a eternidade, quer escrever um romance com um início. Seu desejo não muda — mas o romance começa na primeira página. A intenção é eterna; o efeito é temporal.

Logo: não há contradição entre vontade criadora e imutabilidade, desde que se entenda a vontade não como processo, mas como ato simples e completo.


III. Atemporalidade ≠ inatividade — é modo de ser superior

A objeção conclui: “Se ele é atemporal, ele é imutável. Se ele decide… ele já tá mudando… então ou ele é atemporal e nunca cria nada, ou não é atemporal.”
Essa disjunção é falsa, pois ignora a distinção entre:

CATEGORIADENTRO DO TEMPO (CRIATURAS)FORA DO TEMPO (DEUS)
AçãoSequencial (antes–durante–depois)Simultânea/eterna (sem duração)
MudançaAlteração de estadoNenhuma — só diferenciação relacional
RelaçãoRecíproca (A afeta B → B afeta A)Assimétrica (Deus age; criatura é afetada, mas não o inverso)

Filósofos como Norman Kretzmann e Eleonore Stump defenderam que Deus pode ter consciência relacional atemporal — ou seja, conhecer e amar criaturas como se elas estivessem presentes, sem estar no tempo delas.

Isso é possível porque:

  • O tempo criatural é parte do conteúdo da mente divina (como um filme na memória de um espectador);
  • Deus não “espera” pelas ações humanas — ele as conhece eternamente, em sua totalidade;
  • Logo, sua resposta (graça, providência) é eternamente determinada, não reativa.

Portanto: Deus pode ser pessoal, amoroso e relacional sem ser passível ou mutável — pois sua “resposta” às criaturas está inscrita eternamente em seu único ato de conhecer e querer.


IV. A objeção confunde “nada” com “não-espacial e não-temporal”

A frase final — “Sabe o que que é isso, Berlin? Isso é o nada.” — revela um erro categorial grave.

O “nada” é ausência de ser. Já um ser atemporal, não-espacial e imaterial é:

  • Puro ato de existir (ipsum esse subsistens, na linguagem de Tomás de Aquino);
  • Máxima plenitude ontológica, não carência;
  • Fonte de toda determinação (incluindo tempo e espaço), não sua ausência.

Confundir transcendência com negação é como dizer que “o número 7 não existe, porque não é vermelho nem pesado”. É exigir que o fundamento de todas as categorias pertença a uma delas — o que é absurdo.

“Deus não é um objeto no universo; é a condição de possibilidade de que haja universo algum.”
Edward Feser, Five Proofs of the Existence of God (2017), p. 204


Conclusão: A coerência do modelo teísta clássico

As objeções apresentadas no vídeo são compreensíveis para quem opera com uma metafísica implícita de tipo humeano/materialista, na qual:

  • Causa = evento anterior;
  • Ação = mudança física;
  • Pessoa = ser psicologicamente contínuo no tempo.

Mas o teísmo clássico (que o kalam defende) parte de uma metafísica aristotélico-tomista, onde:

  • Causa = fundamento ontológico;
  • Ação = atualização de potência (em criaturas) ou pura atualidade (em Deus);
  • Pessoa = subsistência em natureza racional — o que se aplica analogicamente a Deus.

Logo, a objeção não refuta o kalam — apenas demonstra que seu autor não entendeu o modelo metafísico subjacente.

O argumento cosmológico kalam permanece logicamente válido, metafisicamente plausível e cientificamente atualizado (dada a evidência do Big Bang e da finitude temporal do universo). Suas premissas —

  1. Tudo que começa a existir tem uma causa;
  2. O universo começou a existir;
  3. Logo, o universo tem uma causa —
    ainda resistem a todas as objeções sérias da literatura filosófica contemporânea.

E a identidade dessa causa — como pessoal, poderosa, atemporal e imaterial — segue sendo a melhor explicação disponível para a origem do espaço-tempo.


Referências Acadêmicas (para aprofundamento):

  • CRAIG, William Lane; SINCLAIR, James. The Kalam Cosmological Argument. In: CRAIG, W. L.; MORELAND, J. P. (eds.). The Blackwell Companion to Natural Theology. Wiley-Blackwell, 2009.
  • LEFTOW, Brian. Time and Eternity. Cornell University Press, 2009.
  • STUMP, Eleonore; KRETZMANN, Norman. Eternity. Journal of Philosophy, 78(8), 1981.
  • FESER, Edward. Five Proofs of the Existence of God. Ignatius Press, 2017.
  • PRUSS, Alexander. Infinity, Causation, and Paradox. Oxford University Press, 2018.

Conclusão: A objeção falha em três níveis

NÍVELERRO COMETIDOCONSEQUÊNCIA
HistóricoConfunde origem do argumento com sua validadeComete falácia genética
FilosóficoEquivoca epistemologia e ontologiaConclui indevidamente que “Deus começou a existir”
LógicoIgnora a restrição da premissa 1 (“começa a existir”)Aplica oKalama Deus, quando ele se aplica aouniverso

A evolução das ideias religiosas é um dado fascinante da história — mas não é um argumento contra a existência de Deus.
É, no máximo, um argumento contra a infalibilidade da revelação progressiva — o que é uma questão teológica distinta.

E enquanto o universo tiver um início temporal — e a ciência diz que tem —, a pergunta permanece:

O que causou o universo?

A resposta mais poderosa, simples e explicativa continua sendo:
Um agente pessoal, atemporal, imaterial e extremamente poderoso.
Seja ele chamado Primeiro Motor, Causa Primeira ou YHWH — o que importa não é o nome, mas a natureza.


Referências Acadêmicas (consenso atual):

  • CRAIG, W. L. The Kalām Cosmological Argument. London: Macmillan, 1979.
  • SMITH, M. S. The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel. Eerdmans, 2002.
  • KRIPKE, S. Naming and Necessity. Harvard UP, 1980.
  • BORDE, A.; GUTH, A.; VILENKIN, A. Inflationary spacetimes are not past-complete. Physical Review Letters, 2003.
  • STAVRAKOPOULOU, F. God: An Anatomy. Pan Macmillan, 2021. (sim, ela é cética — e mesmo assim não alega que Deus “começou a existir”)

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