Inteligência, Vida e Propósito: Uma Leitura Cristã da Palestra de Marcelo Gleiser
A palestra “Os muitos tipos de inteligência”, proferida por Marcelo Gleiser no Instituto Capivara Cultural, oferece uma visão fascinante, interdisciplinar e profundamente humana sobre a natureza da inteligência como fenômeno emergente da vida — desde bactérias até seres humanos, passando por plantas, animais e até ecossistemas inteiros. Ao longo de mais de duas horas, Gleiser e seus colaboradores desconstroem a ideia reducionista de que inteligência é sinônimo de “capacidade de resolver problemas matemáticos” ou “eficiência computacional”, propondo, em vez disso, uma definição relacional, adaptativa e teleológica: inteligência é a capacidade de um ser vivo perceber seu ambiente, processar informação e agir de forma autônoma para preservar sua viabilidade — ou seja, para continuar vivo.
Do ponto de vista cristão, essa abordagem não apenas não contradiz a fé, mas convida a uma contemplação mais profunda da criação como dom, mistério e revelação. A seguir, exploramos essa convergência em cinco eixos teológicos fundamentais.
1. A Inteligência como Expressão da Imago Dei — e Além Dela
Gleiser reconhece que a inteligência humana é singular: somos capazes de linguagem simbólica, autoconsciência, planejamento de longo prazo, criação artística e busca pelo sentido. No entanto, ele insiste que não somos os únicos seres inteligentes — e que a inteligência existe em graus e formas diversas ao longo da cadeia da vida.
A tradição cristã, especialmente a partir de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, ensina que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26–27). Essa Imago Dei não reside apenas na razão, mas na capacidade de amar, escolher livremente, conhecer a verdade e relacionar-se com o Criador. A inteligência humana, portanto, é qualitativamente distinta, pois inclui uma dimensão espiritual e moral que não se reduz a processos biológicos.
Contudo, isso não implica que outras formas de vida sejam “máquinas inertes”. Pelo contrário: a Bíblia fala de uma criação que “clama”, que “suspira” e que “declara a glória de Deus” (Salmo 19:1; Romanos 8:19–22). A inteligência vegetal ou bacteriana descrita por Gleiser — como a capacidade das plantas de “escolher” direções, “lembrar” estímulos ou cooperar em redes miceliais — pode ser entendida, na visão cristã, como manifestação da sabedoria divina presente em toda a criação.
Provérbios 3:19–20:
“O Senhor, com sabedoria, fundou a terra; com entendimento, preparou os céus. Com seu conhecimento, as profundezas se abriram, e as nuvens gotejam orvalho.”
Assim, a inteligência não é um acidente evolutivo, mas eco da mente criadora de Deus — presente em graus diversos, mas sempre orientada para a preservação da vida, que é dom sagrado.
2. A Vida como Dom com Propósito — Não Apenas Sobrevivência
Gleiser afirma repetidamente que o propósito fundamental de toda forma de vida é permanecer viva. Ele chama isso de “viabilidade” e destaca que, desde as bactérias até os humanos, todos os seres vivos demonstram autonomia, intencionalidade e capacidade de escolha em relação ao ambiente.
Do ponto de vista cristão, essa intencionalidade aponta para algo mais profundo: a vida não é um fenômeno aleatório, mas um ato de amor divino. Deus não criou o mundo por necessidade, mas por generosidade (Santo Irineu). A vida existe porque Deus quis que existisse, e a cada instante a sustenta (Colossenses 1:17; Hebreus 1:3).
Aqui reside uma diferença crucial:
- Para a ciência, o “propósito” da vida é funcional: sobreviver e reproduzir.
- Para a fé cristã, o propósito da vida é relacional: participar da comunhão divina.
Isso não invalida a descrição científica — pelo contrário, a complementa. A bactéria que se move em direção ao açúcar está, sim, buscando sobreviver; mas, na visão cristã, essa busca é possível porque Deus dotou a matéria de uma “inclinação para o bem”, uma tendência ontológica para a plenitude. Essa é a ideia de finalidade (telos) presente na filosofia aristotélico-tomista: tudo na criação tende a um fim, e esse fim último é Deus.
3. A Criação como Comunidade — Ecologia, Solidariedade e Sacramentalidade
Um dos momentos mais impactantes da palestra é a descrição das florestas como redes inteligentes, onde árvores “mães” nutrem as jovens, compartilham recursos e até isolam as doentes para proteger o coletivo. Gleiser compara isso ao filme Avatar, mas a analogia cristã é ainda mais rica: a criação é um corpo.
São Paulo escreve que “toda a criação foi submetida à futilidade… mas será libertada da escravidão da corrupção” (Romanos 8:20–21). Isso implica que a natureza não é um recurso a ser explorado, mas uma irmã ferida que espera redenção. A encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco desenvolve essa visão com profundidade, falando de uma “ecologia integral” em que justiça social, cuidado com a terra e espiritualidade se entrelaçam.
A inteligência coletiva das florestas, portanto, não é apenas um mecanismo de sobrevivência, mas sinal da unidade original da criação — uma unidade rompida pelo pecado, mas restaurada em Cristo (Efésios 1:10). O cristão, ao contemplar essas redes subterrâneas de fungos e raízes, vê um reflexo da Igreja como Corpo de Cristo: diversa, interdependente, solidária.
4. O Mistério da Transição da Matéria Inerte à Vida — e o Espanto diante do Ser
Gleiser termina sua exposição com uma pergunta aberta e humilde: como a matéria inerte se tornou viva? Ele reconhece que, apesar de todo o progresso científico, a origem da vida permanece um mistério.
Essa humildade é profundamente cristã. A fé não teme o mistério; acolhe-o como espaço para a adoração. Santo Agostinho escreveu: “Se compreendes, não é Deus”. A vida não pode ser reduzida a fórmulas químicas, porque ela é dom pessoal de um Deus pessoal.
Aqui, a ciência e a teologia caminham juntas:
- A ciência investiga como a vida surgiu.
- A teologia responde por que ela existe.
E a resposta cristã é clara: porque Deus é amor (1 João 4:8). A vida é possível porque o próprio Ser divino é relação trinitária — Pai, Filho e Espírito Santo — e, portanto, fecundo, comunicativo, criativo. A matéria viva é eco desse amor eterno.
5. A Inteligência Artificial e a Dignidade Humana — Um Alerta Ético
Embora Gleiser não explore profundamente a inteligência artificial nesse trecho, ele menciona que o tema está no horizonte do Ilha do Conhecimento. Do ponto de vista cristão, é crucial distinguir:
- Inteligência artificial: simula padrões, mas não possui consciência, desejo, liberdade ou alma.
- Inteligência humana: é pessoal, encarnada, moral e aberta ao transcendente.
A tentação moderna é confundir eficiência com dignidade — como se um algoritmo que resolve problemas fosse “mais inteligente” que uma criança que chora de compaixão. Mas, para o cristianismo, a verdadeira inteligência inclui o coração.
Oséias 6:6: “Pois eu quero misericórdia, e não sacrifício; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.”
A inteligência que não serve ao amor é idolatria da técnica. A verdadeira sabedoria, segundo a Bíblia, começa no temor do Senhor (Provérbios 1:7) — ou seja, no reconhecimento de que toda inteligência é dom, não conquista.
Conclusão: Ciência e Fé como Dois Modos de Ver o Mesmo Mistério
A palestra de Marcelo Gleiser é um convite à humildade, à maravilha e à responsabilidade. Ao mostrar que a inteligência permeia toda a vida, ele nos lembra que não somos donos do mundo, mas parte de uma teia viva e sagrada.
Do ponto de vista cristão, isso ecoa a visão de São Francisco de Assis, que chamava o sol, a lua, o vento e as plantas de “irmãos e irmãs”. Também ressoa com Teilhard de Chardin, que via a evolução como caminho rumo ao Cristo cósmico — o ponto ômega em que toda a criação será recapitulada em Deus.
Portanto, longe de ser uma ameaça à fé, a ciência de Gleiser abre portas para uma espiritualidade mais profunda, mais ecológica e mais encarnada. Ela nos convida a ver Deus não apenas nos milagres, mas nas bactérias que nadam em direção à luz, nas árvores que se comunicam em silêncio, e no coração humano que pergunta: “Por que existe algo em vez de nada?”
E nessa pergunta, ciência e fé se encontram — não em conflito, mas em adoração.
“Os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia as obras das suas mãos.”
— Salmo 19:1
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