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O estranho mundo de Clarinha

NASCITURO2Gilbert Keith Chesterton – velho Ches para os íntimos –, grande pensador inglês do começo do século XX, disse: “O mundo moderno está mais louco do que qualquer sátira que dele se faça.” Isso pode ser prontamente reconhecido quando se realiza, por exemplo, uma comparação entre os filmes hollywoodianos mais imbecis e algumas notícias que vez ou outra saltam aos olhos em jornais e revistas. O uso da razão, o raciocínio bem estruturado e, acima de tudo, o bom senso são coisas tidas como um conjunto démodé de hábitos e inclinações do homem. O que importa mesmo é vencer e convencer.

Um exemplo bastante ilustrativo disso é o exercício de ius sperneandi da escritora Clara Averbuck em seu blog a respeito da aprovação do Estatuto do Nascituro pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. Efetivamente, não existe problema nenhum em que qualquer pessoa exerça seu direito de achar ruim alguma decisão política – eu faço isso todos os dias –, mas considero essencial fazer de maneira honesta e bem embasada. E disso, efetivamente, Clara Averbuck passa longe.

Vejamos alguns exemplos:

Nunca ouviu falar do Estatuto do Nascituro? Basicamente é o seguinte: um ÓVULO FECUNDADO vai ter os mesmos direitos que eu, que a sua mãe, que a sua irmã e que a minha filha e todas as outras mulheres do Brasil.

Mentira. Um embrião – ao qual a escritora se refere meramente como “óvulo fecundado” – não terá exatamente os mesmos direitos que uma pessoa já nascida. Estabelece o artigo 3º do Estatuto do Nascituro que, apesar de ter reconhecida sua natureza humana desde a concepção, o “nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida”. Para o olho destreinado (ou pouco afeito à verdade), isso pode parecer um mero detalhe, mas não é. O objetivo do Estatuto do Nascituro é protegê-lo “de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 5º) ao reconhecer que sua natureza humana advém da concepção e que, portanto, um embrião já é um ser humano.

Se a mãe correr risco de vida e precisar de um tratamento que coloque em perigo a vida do feto, ela será proibida de se tratar.

Mentira. Não há nenhum dispositivo no Estatuto do Nascituro que disponha sobre isso. O estatuto prevê a possibilidade de se processar alguém pela morte culposa do nascituro, algo que deverá ser avaliado cuidadosamente no caso concreto. Não existe qualquer dispositivo vinculante que estabeleça proibição a tratamentos médicos para a mãe que possam colocar a vida do nascituro em risco.

Ao longo de seus comentários a alguns artigos pinçados do Estatuto do Nascituro, o comentário mais recorrente da escritora é: “a mãe que se foda” [sic]. É como se o estatuto procurasse simplesmente proteger o nascituro sem se importar com as condições concretas em que isso se daria. Isso é uma impressão completamente equivocada. Em casos de gravidez advinda de estupro, por exemplo, o estatuto estabelece “direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante” (art. 13, I) e “direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento” (art. 13, III). Pode-se perfeitamente argumentar que a realidade para a efetivação desses direitos seria bastante difícil, como a própria Clara Averbuck eventualmente faz, mas não se pode daí depreender que a lei deixa a mãe desassistida. Afinal, a própria lei lhe concede atendimento prioritário.

Além disso tudo, a afirmação da escritora sobre a motivação do estatuto é completamente deturpada:

E isso é baseado em que, mesmo?

Crenças. Crenças de que DEUS mandou essa vida. Gente, olha só, eu sou atéia, eu não tenho DEUS ALGUM. Se você tem um deus e ele não quer que você aborte, apenas NÃO ABORTE. Mas tire as suas idéias, as suas crenças e essa violência toda do corpo das outras mulheres. Das mulheres. De todas as mulheres.

Mentira, mais uma vez. A concretude da natureza humana do nascituro não se infere exclusivamente de uma concepção religiosa – mais especificamente cristã – do homem, mas do uso da mera razão humana. Não fosse assim, o aborto não seria visto com maus olhos desde a Grécia antiga, como podemos supor a partir do Juramento de Hipócrates (“… não darei a nenhuma mulher substância abortiva”). Além disso, uma grande quantidade de cientistas, anônimos ou renomados (como o geneticista francês Jérôme Lejeune, que descobriu na trissomia do cromossomo 21 a causa da Síndrome de Down), defende que a vida humana começa a partir da concepção.

Mas qual é mesmo, no fundo, a razão da revolta com as iniciativas para restringir o aborto? Em que se baseia essa defesa tão grave, tão zelosa dos “direitos reprodutivos” da mulher à revelia do destino da criança por nascer? Clara Averbuck deixa entrever o grave motivo (grifos meus):

Se a mãe correr risco de vida e precisar de um tratamento que coloque em perigo a vida do feto, ela será proibida de se tratar. Afinal, a vida de um amontoado de células que ainda não nasceu, não tem personalidade, não tem consciência, é evidentemente mais importante do que a de uma mulher formada.

O que há aqui é uma profunda e desumana incapacidade de enxergar num ser humano em desenvolvimento a sua natureza humana em virtude de sua parecença com o que é tido como um ser humano pleno. E o que define um ser humano pleno? Nascer, ter personalidade e ter consciência. Como falta ao nascituro as três coisas, ele não pode ser considerado um ser humano. No entanto, seguindo esse mesmo raciocínio de maneira coerente, podemos igualmente alegar que uma pessoa em estado vegetativo também não é um ser humano – afinal, faltam-lhe a consciência e a personalidade –, ou uma pessoa em estágio avançado de mal de Alzheimer, ou uma criança que sofra de anencefalia. Aliás, neste caso, a pesquisadora Débora Diniz, uma das mais intrépidas amazonas pelo “direito” de abortar, esmiúça melhor o raciocínio que motiva o aborto ao escrever (grifos meus):

A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum ‘a ausência de cérebro’, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível do humano. Ou, como prefere Jacquard (6), aqueles não aptos a compartilharem da ‘humanitude’, a cultura dos seres humanos. Os fetos anencéfalos são, assim, alguns dentre os subumanos – os que não atingiram o patamar mínimo de desenvolvimento biológico exigido para a entrada na humanitude – aos quais a discussão da ISG [interrupção seletiva de gravidez] vem ao encontro.

Um exemplo histórico pode ser posto em paralelo a esse sentimento de “humanitude”: o programa Aktion T4. Em setembro de 1939, o Dr. Karl Brandt, médico pessoal do então chanceler alemão, Adolf Hitler, implementou, com entusiástico apoio do Führer, um programa que visava à eliminação daqueles que, em virtude de sua condição física ou psíquica – idosos, doentes graves, deficientes físicos e mentais –, eram considerados socialmente inaptos a viver e, portanto, subumanos. Até o ano de 1941, mais de 70 mil pessoas foram executadas através do programa Aktion T4. Em agosto daquele ano, o programa foi publicamente denunciado pelo então bispo de Münster, Clemens August von Galen. Apesar de publicamente desativado, o programa continuou ativo secretamente. Estima-se que 245 mil pessoas tenham sido mortas em virtude do programa Aktion T4.

O mesmo raciocínio que subsidiou esse bem-sucedido programa de assassinato de incapazes na Alemanha subjaz no raciocínio apresentado pela escritora Clara Averbuck – desta vez, não como programa discricionário de um governo totalitário, mas travestido de opção individual plenamente legítima que deve contar com permissão e suporte do Estado. A incapacidade de enxergar a natureza humana de um embrião é essencialmente igual à incapacidade de enxergar a natureza humana em uma pessoa em estado vegetativo. Apesar de se saber que o nascituro possui uma formação genética distinta da mãe e que a continuidade da gestação gera um ser vivo com funções e formas humanas, ele pode ser abortado porque é tão-somente um “amontoado de células” que não nasceu. Na melhor das hipóteses, isso faz dele um parasita que pode ser eliminado sem maior peso na consciência.

Diante da realidade nua e crua, todos os subterfúgios possíveis e imagináveis podem ser criados. No entanto, ao fim e ao cabo, continuam ecoando aquelas sábias palavras do velho Ches que usei no começo do texto. Quando um ser humano incapaz de se defender a si próprio, com um universo de possibilidades e potencialidades diante de si, é tratado como algo eliminável, chega-se à conclusão que, de fato, o mundo moderno está mais louco do que qualquer sátira que dele se faça.

Fonte: http://unbconservadora.blogspot.com.br/2013/06/o-estranho-mundo-de-clarinha.html?spref=fb

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