Uma das principais razões para distinguir com clareza a influência da doutrina da criação da influência de outros aspectos da vida religiosa (e, diga-se, das políticas religiosas) sobre o surgimento da ciência é para que possamos entender melhor dois dos relatos paradigmáticos da história, muitas vezes usados para preservar a divulgada impressão pública de que a ciência tem estado em constante guerra com a religião — uma noção muitas vezes mencionada como a “tese do conflito’’, Esses relatos dizem respeito a dois dos mais famosos embates na história: o primeiro, que acabamos de mencionar acima, entre Galileu e a Igreja Católica Romana; e o segundo, o debate entre Huxley e Wilberforce, sobre o tema do famoso livro de Charles Darwin A origem das espécies. Submetidas a uma análise mais rigorosa, essas duas histórias não apoiam a tese do conflito, conclusão para muitos surpreendente, mas, que., todavia, tem a história a seu favor.
Em primeiro lugar, notamos o óbvio: Galileu aparece em nossa lista de cientistas que acreditavam em Deus. Ele não foi nem agnóstico nem ateu, empenhado numa discussão interminável com o teísmo de seu tempo. Dava Sobel, em sua brilhante biografia, A filha de Galileu, desfaz com competência a mítica impressão de Galileu como “um renegado que zombava da Bíblia”. Acontece que Galileu tinha uma crença inabalável em Deus e na Bíblia, e assim permaneceu a vida inteira. Ele acreditava que “as leis da natureza foram escritas pela mão de Deus na linguagem da matemática” e que “a mente humana é uma obra de Deus e uma das mais excelentes’’.
Além disso, Galileu desfrutava de grande apoio de intelectuais religiosos — pelo menos no início. Os astrônomos da poderosa instituição educacional dos jesuítas, o Colégio Romano, inicialmente endossaram sua obra de astronomia e o homenagearam por ela. Todavia, ele sofreu uma forte oposição de filósofos seculares, que ficaram furiosos diante de suas críticas a Aristóteles.
Isso estava fadado a causar problemas. Mas, devemos enfatizar, não inicialmente com a igreja. Pelo menos foi assim que Galileu sentiu a situação, já que em sua famosa Carta à Senhora, Cristina de Lorena, grã-duquesa da Toscana (1615), ele alega que foram os professores acadêmicos que se lhe opuseram de tal forma a ponto de tentarem influenciar as autoridades eclesiásticas para que elas se manifestassem contra ele. A questão em jogo estava clara para os professores: os argumentos científicos de Galileu ameaçavam o onipresente aristotelismo da academia.
No espírito da ciência moderna em desenvolvimento, Galileu queria decidir teorias do Universo baseando-se em evidências, não em argumentos fundamentados em apelos a postulados apriorísticos em geral e na autoridade de Aristóteles em particular. E, assim, ele passou a observar o Universo pelo telescópio e o que ele viu deixou em frangalhos algumas das principais especulações astronômicas de Aristóteles. Galileu observou manchas solares, que deformavam a face do “Sol perfeito” de Aristóteles. Em 1604 ele descobriu uma supernova, o que lançou dúvidas sobre os “céus imutáveis” de Aristóteles.
O aristotelismo era a visão de mundo predominante, não apenas o paradigma em que a ciência devia ser praticada, mas era uma cosmovisão na qual já começavam a aparecer rachaduras. Além disso, a Reforma Protestante desafiava a autoridade de Roma e assim, da perspectiva romana, a segurança religiosa sofria uma crescente ameaça. Era, portanto, uma época muito delicada. A então sob ataque Igreja Católica Romana, que, com todo o mundo da época, havia abraçado o aristotelismo, sentiu-se incapaz de permitir qualquer desafio sério a Aristóteles, apesar dos rumores iniciais (particularmente entre os jesuítas) de que a própria Bíblia nem sempre apoiava Aristóteles. Mas esses surdos rumores ainda não eram fortes o suficiente para impedir a poderosa oposição a Galileu que surgiria tanto na academia quanto na Igreja Católica Romana. Mas, mesmo então, as razões dessa oposição não eram meramente intelectuais e políticas. O ciúme e também — é preciso dizer — a própria falta de sensibilidade diplomática de Galileu foram fatores que agravaram o caso. Ele irritou a elite de sua época escrevendo em italiano, não em latim, a fim de transferir algum poder intelectual às pessoas comuns. Ele estava compromissado com o que mais tarde seria chamado de entendimento público da ciência.
Galileu desenvolveu um lamentável hábito tacanho de denunciar com aspereza os que discordavam dele. Tampouco favoreceu sua causa a maneira com quem ele tratou uma orientação oficial de incluir em sua obra Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo o argumento de seu antigo amigo e apoiador, o papa Urbano VIII (Maffeo Berberini), dizendo que, sendo onipotente, Deus poderia produzir qualquer fenômeno natural de muitas formas diferentes, e assim seria presunção da parte dos filósofos naturalistas afirmar que eles tinham descoberto a solução única. Galileu obedeceu de maneira submissa, mas o fez colocando esse argumento na boca de um personagem parvo de seu livro, a quem deu o nome de Simplício (“bobo”). Poderíamos ver nisso um clássico exemplo de dar um tiro no próprio pé.
Não há, é óbvio, nenhuma desculpa aceitável para a Igreja Católica Romana fazer uso do poder da Inquisição para amordaçar Galileu, nem para depois levar vários séculos para “reabilitá-lo”. Mas deveríamos observar que, uma vez mais contrariando a crença popular, Galileu nunca foi torturado; e sua subsequente “prisão domiciliar” foi vivida, na maior parte, em luxuosas residências privadas de amigos dele.“
Há importantes lições a inferir da história de Galileu. Primeiro, uma lição para aqueles que estão dispostos a levar o relato bíblico a sério. É difícil imaginar que alguém ainda acredite que a Terra é o centro do Universo com os planetas e o Sol girando em torno dela. Isto é, aceita-se a visão heliocêntrica de Copérnico, pela qual Galileu lutou, e não se pensa que ela esteja em conflito com a Bíblia, embora praticamente todo mundo no tempo de Copérnico e antes dele pensasse como Aristóteles que a Terra fosse o centro físico do Universo e fizesse uma leitura literal de partes da Bíblia para apoiar essa noção. O que aconteceu para fazer a diferença? Aconteceu simplesmente que agora se tem uma visão mais sofisticada, mais detalhada da Bíblia,2 e podemos ver que quando, por exemplo, a Bíblia fala do Sol “surgindo”, ela está falando fenomenologicamente — isto é, fazendo uma descrição do que parece aos olhos de um observador, em vez de implicar um compromisso com uma teoria solar e planetária específica. Os cientistas de hoje fazem exatamente o mesmo: em suas conversas normais, eles também falam do Sol que surge, e, em geral, suas afirmações não são tomadas como implicações de que eles são obscurantistas aristotélicos.
A importante lição é que devemos ser suficientemente humildes para distinguir entre o que a Bíblia diz e a nossa interpretação dela. O texto bíblico simplesmente pode ser mais complexo do que inicialmente imaginamos e, em consequência, podemos correr o risco de usá-lo para apoiar ideias que ele nunca pretendeu ensinar. Assim peio menos pensava Galileu em sua época, e a história depois mostrou que ele estava certo.
Finalmente, outra lição numa direção diferente, a que não se chega com frequência, é a de que coube a Galileu, que acreditava na Bíblia, promover um melhor entendimento científico do Universo, não apenas, como vimos, contra o obscurantismo de alguns eclesiásticos,mas (e em primeiro lugar) contra a resistência (e obscurantismo) dos filósofos seculares de sua época que, como os eclesiásticos, também eram convictos discípulos de Aristóteles. Os filósofos e cientistas de hoje também precisam ser humildes à luz dos fatos, mesmo que esses fatos lhes sejam mostrados por alguém que acredita em Deus. A ausência da crença em Deus não garante mais a ortodoxia científica do que a crença em Deus. O que está claro, na época de Galileu e na nossa, é que a crítica de um paradigma científico dominante está repleta de riscos, independentemente de quem está envolvido nela. Concluímos que o “caso de Galileu”, realmente nada faz para confirmar uma visão simplista de conflito entre religião e ciência.
Fonte: Por que a ciência não consegue enterrar Deus, de John Lennox.