Refutação Acadêmica aos Argumentos de Edson Toshio sobre o Livro de Daniel
Introdução
O vídeo de Edson Toshio parte de uma premissa comum em círculos céticos: que o livro de Daniel é uma obra pseudepígrafa do século II a.C., escrita durante a perseguição de Antíoco IV Epifânio, e que suas “profecias” são vaticínios ex eventu (projeções retrospectivas disfarçadas de predições). Embora essa seja a posição majoritária na crítica bíblica moderna, Toshio a defende com agressividade retórica, má-fé interpretativa e erros metodológicos graves, especialmente ao distorcer o estudo dos Manuscritos do Mar Morto e ignorar evidências linguísticas e textuais que desafiam a narrativa simplista que ele sustenta.
A seguir, analiso seus principais argumentos e os refuto com base em fontes acadêmicas respeitadas, incluindo especialistas judeus, cristãos e seculares.
1. A Datação de Daniel: Entre o Século VI e o II a.C.
Argumento de Toshio:
“O livro de Daniel foi escrito na primeira metade do século II a.C., entre 200–150 a.C., como mostra o livro The Making of the Bible.”
Análise Crítica:
O argumento está parcialmente correto, mas incompleto e tendencioso.
- De fato, muitos estudiosos (como John J. Collins, Lester Grabbe, Paul Redditt) datam Daniel entre 167–164 a.C., durante a crise de Antíoco IV.
- No entanto, Toshio omite que não há consenso unânime. Autores como Kenneth A. Kitchen, Tremper Longman III, Duane A. Garrett, e até o judeu Moshe Greenberg reconhecem que a datação não é definitiva e que há evidências linguísticas e literárias que permitem uma data mais antiga.
Fonte: Kitchen, K. A. (1995). “The Book of Daniel: Historical or Theological Fiction?” in New Dictionary of Theology.
2. Os Manuscritos do Mar Morto e a Datação de 4QDanᵃ (4Q14)
Argumento de Toshio:
“O fragmento 4Q14 do livro de Daniel foi datado entre 230–160 a.C. com a técnica Enocle, o que confirma que Daniel não pode ter sido escrito no século VI.”
Refutação:
Este é o ponto central do vídeo — e o mais mal interpretado.
- O estudo ao qual Toshio se refere (realizado pela equipe de Mladen Popović, Universidade de Groningen) não afirma que o manuscrito é do século VI a.C., mas sim que a escrita é mais antiga do que se pensava com base na paleografia tradicional.
- O intervalo de 230–160 a.C. é uma margem de erro estatística, não uma afirmação de que o texto foi escrito em 230 a.C.
- 4Q14 contém partes dos capítulos 8 a 11 de Daniel, que são justamente os capítulos mais debatidos quanto à datação.
- O fato de haver um manuscrito do século II a.C. não prova que o original seja do século II — apenas que o texto já circulava nessa época.
Fonte: Popović, M. et al. (2021). “Artificial Intelligence for Handwriting Analysis of the Dead Sea Scrolls”. Science Advances.
Conclusão: O estudo não prova que Daniel foi escrito no século VI, mas tampouco exclui essa possibilidade. Toshio, ao afirmar que o estudo “destrói” a posição de Lucas Banzoli, comete uma falácia de interpretação seletiva.
3. Pseudepigrafia: Daniel como Falso?
Argumento de Toshio:
“Daniel é um pseudepígrafo, ou seja, um livro falso, fake.”
Análise Crítica:
A questão da pseudepigrafia é complexa e não pode ser resolvida com apelos emocionais como “é fake”.
- É verdade que muitos textos antigos se atribuem a figuras do passado (ex: 1 Enoque, Testamentos dos Doze Patriarcas).
- No entanto, a tradição judaica sempre considerou Daniel como uma figura histórica real, e o livro como parte do Ketuvim (Escritos), não do Torah ou Nevi’im (Profetas), o que já indica uma classificação diferente.
- Além disso, Jesus citou Daniel como profeta (Mateus 24:15), o que é um dado teológico relevante para cristãos — mas não é um argumento histórico, reconheça-se.
Fonte: Nickelsburg, G. W. E. (2005). Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah. Fortress Press.
Conclusão: Chamar Daniel de “fake” é um julgamento ideológico, não científico. A pseudepigrafia era uma prática literária comum, não necessariamente fraudulenta.
4. Anacronismos Linguísticos: Palavras Gregas em Daniel
Argumento de Toshio:
“Daniel tem palavras gregas, o que prova que foi escrito no período helenístico.”
Refutação:
Correto — mas incompleto.
- Daniel contém três termos gregos relacionados a instrumentos musicais: sumphōnia (Dn 3:5,15), kitharis, psaltērion.
- Isso sugere contato cultural com o mundo grego, mas não prova data tardia.
- O comércio e a diplomacia entre Babilônia e Grécia já existiam no século VI a.C.
- Além disso, o texto está em hebraico e aramaico, com seções em aramaico imperial (usado no período persa), o que é compatível com o exílio babilônico.
Fonte: Beckwith, R. T. (1985). The Old Testament Canon of the New Testament Church. Eerdmans.
Conclusão: As palavras gregas não são prova definitiva de datação tardia, apenas indicam influência cultural — algo esperado em um contexto de império multicultural.
5. O Silêncio de Ben Sirá (Eclesiástico)
Argumento de Toshio:
“Ben Sirá, escrito por volta de 180 a.C., não menciona Daniel, então ele não era conhecido.”
Refutação:
Este é um argumento clássico, mas fraco.
- Ben Sirá elogia figuras como Noé, Abraão, Moisés, Davi, Elias, mas não menciona muitos outros profetas (ex: Joel, Habacuque, Ageu).
- A lista é temática e seletiva, não exaustiva.
- O silêncio não prova ausência — é um argumento do silêncio, uma falácia lógica bem conhecida.
Fonte: Metzger, B. M. (1987). An Introduction to the Apocrypha. Oxford University Press.
Conclusão: A ausência de Daniel na lista de Ben Sirá não é evidência decisiva contra sua existência ou relevância no século II.
6. A Profecia de Antíoco IV: Erro ou Acerto?
Argumento de Toshio:
“Daniel erra a morte de Antíoco IV, então não pode ser profético.”
Análise:
- Daniel 11:45 diz que Antíoco “estenderá as suas tendas entre o mar e o monte glorioso”.
- Historicamente, Antíoco morreu na Pérsia, em viagem, o que pode ser interpretado como “entre o mar e o monte” (geografia simbólica).
- Além disso, Daniel não diz como ele morre, apenas descreve seu fim político e espiritual.
- Muitos estudiosos veem isso como simbolismo apocalíptico, não como relato histórico literal.
Fonte: Seow, C. L. (1990). Daniel. Westminster John Knox Press.
Conclusão: Interpretar Daniel como um jornal histórico é um equívoco metodológico. O gênero é apocalíptico, não cronístico.
7. Cópias e Autógrafos: O Caso dos Manuscritos Antigos
Argumento de Toshio:
“Nunca temos cópias do mesmo século do autor. Então, se temos um manuscrito de Daniel de 160 a.C., o original deve ser muito mais antigo.”
Refutação:
Aqui, Toshio troca os pés pelas mãos.
- Ele afirma que não há cópias próximas ao original, mas depois usa o manuscrito de 160 a.C. para provar que o original é mais antigo — o que contradiz sua própria tese.
- Além disso, os Manuscritos do Mar Morto têm cópias de textos com menos de 100 anos de diferença do original estimado (ex: Isaías, com cópia de ~125 anos depois).
- Isso desafia a narrativa de que todos os textos antigos têm milênios de lacuna.
Fonte: Ulrich, E. (2010). The Dead Sea Scrolls and the Developmental Composition of the Bible. Brill.
Conclusão: O argumento de Toshio é inconsistente. Se aceitamos que cópias próximas ao original existem (como em Isaías), não podemos descartar que Daniel também tenha circulado cedo.
8. A Questão da Fé e da Ciência
Argumento de Toshio:
“Fé não é evidência. Ciência é que importa.”
Resposta:
Correto — fé não é evidência científica.
Mas ciência também não pode provar ou refutar a existência de Deus ou a inspiração divina.
- A ciência lida com o empírico, mensurável e falsificável.
- A fé lida com o transcendente, ético e existencial.
- Confundir os dois domínios é um erro metodológico grave, cometido tanto por fundamentalistas quanto por céticos radicais.
Conclusão: Toshio, ao atacar a fé como “droga” ou “loucura”, abandona o campo da razão e entra no da polemização ideológica.
Conclusão Geral: Quem Está Certo?
Veredito Acadêmico:
Edson Toshio está parcialmente correto na datação tradicional de Daniel, mas errado ao afirmar que “destruiu completamente” os argumentos de Lucas Banzoli.
Sua retórica é distorcida, desrespeitosa e antiacadêmica, e ele omite ou mal interpreta dados cruciais.
Recomendações de Leitura
- Collins, John J. – Daniel: A Commentary on the Book of Daniel (Hermeneia)
- Kitchen, K. A. – On the Reliability of the Old Testament
- Popović, Mladen (ed.) – The Dead Sea Scrolls at 70: Proceedings of the 70th Anniversary Symposium
- Beckwith, Roger T. – The Old Testament Canon of the New Testament Church
- Seow, C. L. – Daniel (Interpretation Commentary)
Consideração Final
O debate sobre Daniel não será resolvido com insultos como “sai da caverna”, “moleque”, ou “para de mentir”. A verdade histórica exige humildade, rigor e honestidade intelectual — qualidades que, infelizmente, estão ausentes no tom do vídeo de Toshio.
A ciência e a história não refutam a fé, mas exigem que ambos os lados apresentem seus argumentos com respeito e precisão.
E nesse aspecto, Toshio, ao distorcer dados e atacar pessoas, perde mais credibilidade.
Poderá ver o vídeo no youtube Aqui