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Livro “Em defesa de Deus: o que a religião realmente significa”, de Karen Armstrong

Hoje em dia, muita gente pensa que ser religioso é acreditar em fatos históricos absurdos. Moisés abrindo o Mar Vermelho para a passagem do povo hebreu. Deus confeccionando Eva a partir de uma costela de Adão, ou tirando o mundo do Caos em seis dias. A virgem Maria concebendo o filho de Deus. Jesus transformando água em vinho, multiplicando o pão, caminhando sobre o mar, ressuscitando e subindo ao Céu. Na era moderna, positivista e racionalista, os rituais e a disciplina religiosa foram colocados à margem do que foi considerado como a boa educação. Perdemos a capacidade de ler um texto religioso, confundindo-o com os nossos textos históricos e científicos, e criticando-os por não terem qualidades que nunca pretenderam ter. Não surpreende que hoje, embora já desiludidos do positivismo, o nosso conhecimento e, principalmente, nossa compreensão da religião seja precária e distorcida. Assim, para explicar o que a religião realmente significa, Karen Armstrong, em seu livro Em defesa de Deus, percorre a história da religião, da teologia, da ciência, do ateísmo, e do fundamentalismo.
A era moderna, que teve muitos acertos, também cometeu muitos erros. Um deles foi não entender muito bem o homem e seu anseio legítimo de transcendência e sentido. O homem sem religião, fenômeno que nasceu no século XVIII, tem uma história. Já atravessou muitos descaminhos: da certeza na realização individual ao niilismo desesperado dos poetas românticos; da certeza na evolução histórica a caminho do paraíso comunista à revelação do que realmente eram as sociedades comunistas; da certeza na apoteose de grupos étnicos e nacionais ao apocalipse dos massacres, das guerras mundiais e do terrorismo.
Com as velhas certezas despedaçadas no chão juntamente com seus ídolos, vivemos em uma época de desespero, em que pode renascer a leve esperança religiosa ou novas certezas esmagadoras (que podem vir cobertas em trapos religiosos, científicos, políticos, nacionalistas, étnicos, ou filosóficos).
Depois de estudar profundamente a história das diversas religiões, Karen Armstrong percebeu que religião tinha pouco a ver com pensamento exato a respeito de acontecimentos históricos ou fenômenos naturais. O significado pré-moderno das palavras crença e fé é confiar, amar, entregar o coração. Mas a mentalidade moderna superestimou a realidade, o prático, o que pode ser utilizado, em detrimento da fantasia, da poesia. Em uma época assim, é sinal da força e da importância da religião que as pessoas religiosas, para não abandonar sua prática, tenham acreditado literalmente nos símbolos da sua religião e tentado justificar racionalmente e pragmaticamente a poesia religiosa.
Religião é principalmente prática correta (ortopraxia) e não pensamento correto (ortodoxia). Participação em rituais mitológicos, orações, e verdades simbólicas. A religião é uma forma de entrar em contato com “algo” que está além do tempo e do espaço, e portanto além da linguagem e do pensamento humano, mas que dá sentido e valor à vida. A religião, para falar de “algo” que transcende o que nossa mente pode perceber, só pode falar por meio de símbolos e mitos. E, nesse sentido, não pode haver o símbolo e o mito certo, porque todos são necessariamente imperfeitos.
O símbolo correto é todo aquele capaz de transformar o religioso em um ser humano melhor, mais caridoso, mais integrado à vida, ao mundo e aos outros seres humanos. Karen Armstrong também percebeu que no coração de todas as grandes religiões está o que chamamos de regra de ouro, em sua formulação negativa ou positiva: não faça ao outro o que você não gostaria que lhe fizessem, e trata o próximo do mesmo modo que você gostaria de ser tratado. Para isso, é preciso que você olhe dentro de si e perceba o que faz você sofrer, e também é preciso imaginação, para se colocar na posição do outro.
Leia aqui trechos do livro Em defesa de Deus:
Achamos que a religião nos deve fornecer informações. Existe um Deus? Como o mundo surgiu? Mas essa é uma aberração moderna.
Muitos esqueceram que o ensinamento religioso era o que os rabinos chamavam de miqra. Era, essencialmente, um plano de ação. O devoto precisava abraçar o símbolo, envolver-se com ele, ritual e eticamente, e deixá-lo operar uma profunda mudança em sua pessoa. Esse era o significado original das palavras fé e crença. Sem envolvimento, o símbolo permanecia obscuro e implausível.
Hoje, com a própria ciência se tornando menos determinada, talvez esteja na hora de retomar uma teologia que afirme menos e se abra mais ao silêncio e ao desconhecimento.
O papel da religião, estreitamente relacionado com o da arte, consiste em nos ajudar a ter uma convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, dor, sofrimento, desespero, indignação em face da injustiça e da crueldade da vida.
O insight religioso requer não só dedicação intelectual para ir além dos ídolos do pensamento, como um estilo de vida pautado pela compaixão que nos permite transpor a esfera da individualidade. O logos agressivo, que procura dominar, controlar e eliminar a oposição, não proporciona esse insight transcendente. A experiência demonstra que isso só é possível quando cultivamos uma atitude receptiva e atenta, como a que assumimos em relação às artes plásticas, à musica e à poesia. Isso requer kenosis, capacidade negativa, sábia passividade e um coração que observa e recebe.
Cada tradição formula o sagrado de um modo, e isso certamente afeta a maneira como os fiéis o experimentam. Há diferenças importantes entre brahman, nirvana, Deus e Dao, mas isso não quer dizer que um é “certo” e os outros são “errados”. Nessa área, ninguém pode ter a última palavra. Todos os sistemas religiosos se esforçam para mostrar que não é possível expressar o sublime em nenhum sistema teórico, por mais grandioso que seja, porque ele escapa ao alcance das palavras e dos conceitos.
As pessoas se dedicam à atividade religiosa praticamente desde sempre. Desenvolveram mitologias, rituais e disciplinas éticas que lhes permitiam vislumbrar a santidade que, indescritivelmente, parecia aprimorar e preencher sua humanidade. Eram religiosas não porque tinham mitos e doutrinas científica ou historicamente válidas, não porque buscavam informação sobre as origens do cosmo, não porque desejavam uma vida melhor no além-túmulo. Acreditavam não porque sacerdotes ou reis ávidos de poder as obrigavam: ao contrário, a religião, com frequência, ajudou-as a combater esse tipo de tirania e opressão. Religião tem a ver com viver intensamente aqui e agora. Os religiosos são ambiciosos. Querem levar uma vida transbordante de significado. Sempre desejaram incorporar a seu cotidiano os momentos de arrebatamento e insight que lhes ocorriam em sonho, em sua contemplação da natureza, em seu relacionamento com os outros e com os animais. Em vez de se deixar esmagar e amargurar pelo sofrimento, procuram manter-se em paz e serenos diante da dor. Querem coragem para superar seu terror da mortalidade; não querem ser gananciosos e mesquinhos, mas generosos e justos e exercer plenamente sua humanidade. Não querem ser uma vasilha comum, mas, como propõe Confúcio, transformar-se num belo vaso ritual, transbordante da santidade que aprenderam a ver na vida. Tentam honrar o inefável mistério que percebem em cada ser humano e criar sociedades que respeitem o estrangeiro, o pobre e o oprimido. Muitas vezes falham, naturalmente. No entanto, acima de tudo, descobrem que as disciplinas da religião os ajudam a fazer tudo isso. Quem se dedica com maior zelo mostra que os mortais podem viver num plano mais elevado, num plano divino, e, assim, despertar para seu verdadeiro eu.
Glossário (alguns termos do Glossário que é parte do livro)

apofático (grego): sem palavras, silencioso.
brahman (sânscrito): o Todo, o conjunto da realidade, a essência da existência, a base de tudo que existe, o Ser em si, a força que une o cosmo e lhe permite crescer e desenvolver-se. A realidade suprema da religião védica.
compaixão (derivado do grego e do latim): capacidade de sentir com o outro, empatia, solidariedade. Não significa piedade, pena. É considerada a maior das virtudes em todas as grandes tradições religiosas; a prova da verdadeira experiência religiosa e um dos principais meios de experimentar o sagrado. Todas as tradições também nos dizem que não devemos restringir nossa benevolência a nosso grupo, mas devemos ter preocupação com todos, respeitar o estranho, amar até nossos inimigos.
credo (latim); infinitivo credere: hoje, é geralmente traduzido como creio e crer, respectivamente. Mas essa é uma evolução relativamente recente (cf. crença). Credo deriva de cor do: dou o coração. Na origem, significava confiança, dedicação, compromisso, envolvimento. Quando traduziu a Bíblia para o latim, no século IV, São Jerônimo usou credo como equivalente de pisteuo.
crença: originalmente no inglês médio, o verbo bileven significava amar, prezar, querer bem; o substantivo bileve significava lealdade, confiança, dedicação, compromisso. Tinha relação com o alemão liebe, amado, e o latim libido, desejo. Nas versões inglesas da Bíblia, os tradutores usaram essas palavras como equivalentes ao grego pistis, pisteuo, e ao latim fides, credo. Assim, crença se tornou equivalente a fé. Mas o termo começou a mudar de significado no final do século XVII, quando passou a designar anuência intelectual a uma proposição específica, a determinado ensinamento, opinião ou doutrina. Nesse sentido moderno, foi usada primeiramente por filósofos e cientistas, e só no século XIX o novo uso se difundiu no contexto religioso.
Dao (chinês): o Caminho, o rumo correto. Muitos rituais chineses tinham por objetivo assegurar que os assuntos humanos estivesses em sintonia com o Caminho do Céu – ou, podemos dizer, com o Ser. Na tradição conhecida como daoísmo, tornou-se a realidade última, indescritível e impessoal; a fonte da qual deriva toda aparência; o produtor não produzido de tudo que existe, que garante a estabilidade e a ordem do mundo.
dynamis (grego): os poderes de Deus; termo usado pelos gregos para denotar a atividade de Deus no mundo, que era muito diferente da indescritível e incognoscível essência (ousia) divina.
ekstasis (grego): êxtase; literalmente, sair de si; ir além do eu; transcender a experiência normal.
energiai (grego): energias; termo usado para distinguir as atividades ou manifestações de Deus no mundo, pelas quais podemos vislumbrar alguma coisa do divino, inacessível de outro modo. Como dynamis, o termo é empregado para distinguir entre a concepção humana de Deus e a inefável e desconhecida realidade. Para os padres gregos, o Logos e o Espírito Santo eram as energiai que, por assim dizer, traduziam o divino em termos que, em certa medida, os humanos conseguiam entender.
Espírito Santo: tradução do hebraico ruach: espírito; termo usado pelos rabinos, geralmente intercambiável com Shekhinah, para indicar a presença de Deus na terra; distinto de Deus, a essência da divindade que excede o entendimento ou a experiência humana. Os primeiros judeus cristãos usavam o termo para denotar a presença imanente dentro deles que os dotava de poderosa energia e lhes permitia entender o significado mais profundo da missão de Jesus.
: confiança, lealdade; tradução do latim fides (lealdade, fidelidade) e do grego pistis. Na origem, não significava aceitação de uma teologia ortodoxa. Ver crença.
hesychia (grego); hesicasta: tranquilidade interior, silêncio interior; espiritualidade apofática, contemplativa, que despojava a mente de ideias teológicas e tentava elevar-se acima de palavras, conceitos e sensações.
hypostasis (grego); plural hypostases: no contexto secular, designa a expressão exterior da natureza interior de uma pessoa; objeto ou pessoa vistos de fora; os gregos usavam o termo para designar as manifestações exteriores do Deus desconhecido como Logos e Espírito Santo.
kenosis (grego): esvaziamento, o esvaziamento do eu, a eliminação do egoísmo.
logos (grego): discurso do diálogo; pensamento racional, lógico e científico. Entre os antigos filósofos gregos, logos designa o modo de pensar pragmático e acurado, distinto de mythos. Entre os estóicos, refere-se aos processos subjacentes racionais e dominantes da natureza, também chamados de Deus ou Espírito. Os cristãos identificam o Logos com a sabedoria de Deus, que dá origem a tudo e proporciona aos humanos vislumbres do divino através da história. No prólogo de seu evangelho, São João afirma que o Logos se fez carne na pessoa de Jesus. Com o desenvolvimento da teologia cristã, o Logos se tornaria uma das hypostases, prosopoi, dynamis e energeiai de Deus, que, sem isso, seria desconhecido e incognoscível.
miqra (hebraico): chamado à ação; nome que os primeiros rabinos davam às Escrituras.
musterion (grego): mistério; relacionado com o verbo muein, fechar os olhos ou a boca, refere-se a uma realidade obscura, invisível ao olhar comum, inacessível à linguagem. Também está relacionado com myein: iniciar, e myesis: iniciação. Daí os cultos de mistério que se desenvolveram no mundo grego, notadamente em Elêusis, durante o século VI a.C.; ritos secretos que proporcionavam aos participantes uma poderosa experiência do sagrado. Mais tarde, os cristãos gregos aplicavam o termo musterion às iniciações do batismo e da eucaristia. A exegese, busca do significado oculto das Escrituras, também era um musterion, um processo de iniciação transformador. Portanto, musterion não era algo que se devia pensar e acreditar (no sentido moderno), mas algo que se fazia. Isso era particularmente evidente no dogma da Trindade, que não era apenas uma formulação doutrinal, mas um exercício de meditação.
mystes (grego); plural mystai: iniciado; alguém que participa de um mistério (musterion).
mythos (grego); plural mythoi: mito; relato que não pretende ser histórico ou factual, mas expressa o significado de um acontecimento ou de uma narrativa e contém sua dimensão atemporal, eterna. Pode-se definir mito como algo que, em algum sentido, ocorreu uma vez, mas também acontece todo o tempo. Também se pode ver o mito como uma forma primitiva de psicologia, descrevendo o mundo labiríntico e obscuro da psique. Derivado do verbo muein, fechar os olhos ou a boca, está relacionado com mistério e misticismo e tem conotações de escuridão e silêncio. Refere-se a experiências e convicções que não são facilmente verbalizáveis, escapam à clareza do logos e são diferentes do discurso e dos hábitos relacionados com a realidade cotidiana.
nirvana (sanscrito): extinção, apagamento; no budismo, extinção do eu, que proporciona iluminação e liberta da dor e do sofrimento; um sagrado refúgio de paz descoberto nas profundezas do eu; uma realidade indefinível, porque não corresponde a nenhum conceito e é incompreensível para quem ainda está preso nas armadilhas do egoísmo.
ousia (grego): essência; natureza; o que faz uma coisa ser o que é; pessoa ou objeto vistos a partir de dentro; aplicado ao que chamamos de Deus, o termo denota a essência, natureza ou substância divina, que sempre escapa a nosso entendimento ou a nossa experiência. Os rabinos diziam que nem sequer é mencionado na Bíblia ou no Talmude.
persona (latim); plural personae: máscara, rosto; tradução do grego prosopon: a máscara usada pelo ator para a plateia poder reconhecer sua personagem e ouvir bem sua voz (o som [sonus] era amplificado, como se passasse por [per] ela). Daí as hypostases da Trindade serem chamadas de as três pessoas divinas.
pistis (grego): forma verbal pisteuo: confiança, lealdade, dedicação; geralmente traduzido como fé.
prosopon (grego); plural prosopoi: rosto, máscara; também designa expressão facial que revela pensamentos íntimos ou papel que alguém decide representar na vida ou no teatro. Usado com frequência pelos padres gregos como alternativa para hypostasis.
Ser: a energia fundamental que sustenta e anima tudo que existe; não confundir com um ser, que é uma manifestação finita, particular e limitada do Ser em si.
símbolo (derivado do grego): objeto material, pessoa, ícone ou ideia que representa algo imaterial. O grego symbolon sugere algo que é juntado. Nunca experimentamos a realidade incognoscível que chamamos de Deus diretamente, mas sempre num objeto terreno, como uma pessoa, um texto, um código legal, uma montanha, um templo, uma ideia ou doutrina. Os credos da igreja eram originalmente chamados de símbolos. No mundo pré-moderno, o símbolo terreno e a realidade que ele apontava eram vistos como inseparáveis. Tinham realmente sido juntados e misturados, como gim e tônica num coquetel. No século XVI, porém, prevalecendo a busca científica de precisão e univocidade, passou-se a distinguir o símbolo da realidade transcendente que ele apontava. Assim, os reformadores protestantes diziam que a eucaristia era apenas um símbolo. Os deuses e devas eram símbolos da realidade transcendente do Ser. A ideia de Deus também era um símbolo, dirigindo nossa atenção para uma realidade transcendente, além de si mesma.
transcendência, adj. transcendente (derivado do latim): o que sobe além da realidade conhecida e não pode ser classificado.

Fonte: http://antesqueeudesista.blogspot.com.br/

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