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Os limites da explicação científica

Test tubes and other recipients in chemistry labA ciência explica. Para muita gente, essa frase resume o poder e o fascínio da ciência. A ciência nos capacita a entender o que antes não compreendíamos; e. ao nos proporcionar o conhecimento da natureza, confere-nos poder sobre ela. Mas quanto explica a ciência? Há limites?

Alguns acham que não e, no extremo materialista do espectro, estão os que sustentam que a ciência é a única maneira de conhecermos a verdade e que ela pode, pelo menos em princípio, explicar tudo. Essa visão se chama “cientificismo”. Peter Atkins apresenta uma expressão clássica dessa visão: “Não há nenhum motivo para supor que a ciência não possa tratar de todos os aspectos da existência”. Essa, em resumo, é a essência do cientificismo.

Aqueles que como Atkins defendem essa visão consideram todas as converse sobre Deus, religião e experiências religiosas como estranhas à ciência e, portanto não objetivamente verdadeiras. Eles admitem, é claro, que muitas pessoas acreditam em Deus-, conseguem entender que pensar em Deus pode causar efeitos emocionais e até físicos, alguns dos quais podem ser benéficos. Mas, para eles acreditar em Deus é como acreditar em Papai Noel, dragões, bichos-papões, ou fadas e duendes no fundo do jardim.

Richard Dawkins expressa essa ideia dedicando seu livro Deus,um delírio à memória de Douglas Adams com uma citação: “Não é suficiente ver que um jardim é bonito sem precisar acreditar que no fundo dele existem fadas?”.

O fato de alguém poder acreditar em fadas e se sentir encantado ou aterrado por elas não significa que elas existam. Portanto, os cientistas de quem estamos falando sentem-se (muitas vezes, mas nem sempre, como já vimos) satisfeitos em deixar que as pessoas sigam pensando em Deus e na religião, se isso lhes agrada, contanto que elas não afirmem que Deus possui alguma existência objetiva, ou que a crença religiosa constitui conhecimento. Em outras palavras, ciência e religião podem coexistir pacificamente, desde que a religião não invada o reino da ciência. Pois somente a ciência pode nos dizer o que é objetivamente verdadeiro; somente a ciência pode transmitir conhecimento. O resultado final é este: a ciência trata da realidade, a religião não.

Alguns elementos desses pressupostos e alegações são tão bizarros que pedem um resposta imediata. Tome-se a mencionada citação de Douglas Adams apresentada por Dawkins. Ela entrega o jogo, pois mostra que Dawkins comete o erro de propor falsas alternativas, sugerindo que se trata de fadas ou de nada. As fadas no fundo do jardim podem muito bem ser uma ilusão, mas que dizer do jardineiro, para não falar sobre o dono do jardim? A possibilidade da existência deles não pode ser descartada de forma tão sumária — de fato, muitos jardins têm os dois.

Além disso, tome-se a alegação de que só a ciência pode transmitir a verdade. Se fosse verdadeiro, isso significaria o fim de muitas disciplinas em escolas e universidades. No caso, a avaliação da filosofia, da literatura, da arte e da música situa-se fora do escopo da ciência no sentido estrito. Como poderia a ciência nos dizer se um poema é ruim ou se é obra de um gênio? Certamente não seria mediante a medição do comprimento das palavras ou da frequência das letras que ocorrem nos poemas. Como poderia a ciência nos dizer se um quadro é uma obra-prima ou um confuso borrão de tintas? Com certeza não seria mediante uma análise química da tinta e da tela. Da mesma forma, o ensino da moral se situa fora da ciência. Esta pode nos dizer que, se adicionarmos estricnina à bebida de alguém, o veneno causará a morte da pessoa. Mas a ciência não pode nos dizer se é moralmente correto ou não colocar estricnina no chá de nossa  avó no intuito de nos apoderarmos de seus bens.

Seja como for, a declaração de que apenas a ciência pode transmitir conhecimento é uma daquelas declarações contraditórias que especialistas em lógica como Bertrand Russell gostam de destacar. O que causa é que o próprio Russell parece ter aprovado essa visão particular quando escreveu: “Qualquer conhecimento que se possa conseguir, deve ser obtido por métodos científicos; e o que a ciência não pode descobrir a humanidade não pode conhecer”. Para enxergar a natureza contraditória dessa declaração, apenas precisamos perguntar: Como Russell sabe disso? Porque sua declaração não é por si só enunciado científico, e, desse modo, se verdade então (de acordo com essa mesma declaração), ela não pode ser conhecida — e, mesmo assim, Russell acredita que ela seja verdadeira.

O BOLO DA TIA MATILDE

Talvez uma simples ilustração ajude a nos convencer de que a ciência é limitada. Vamos imaginar que minha tia Matilde tenha assado um belo bolo e que nós o levamos  para que ele seja examinado por um grupo de cientistas de primeira linha. Eu, como mestre de cerimônias, peço-lhes uma explicação do bolo, e eles se põem a trabalhar. Os cientistas da nutrição nos darão explicações sobre a quantidade de calorias do bolo e seus valores nutricionais; os bioquímicos nos darão informações sobre a estrutura das proteínas, gorduras e outros componentes do bolo; os químicos, sobre os elementos envolvidos em sua composição; os físicos poderão analisar o bolo em termos de suas partículas fundamentais; e os matemáticos nos apresentarão sem dúvida um conjunto de elegantes equações descrevendo o comportamento daquelas partículas.

Agora que esses especialistas, cada um em relação a sua disciplina específica, nos deram uma descrição exaustiva do bolo, podemos dizer que ele foi explicado por completo? Com certeza recebemos uma descrição de como o bolo foi feito e de como seus vários elementos se relacionam entre si; mas suponhamos que eu lance ao grupo de especialistas uma questão final: Por que o bolo foi feito? O sorriso no rosto da tia Matilde mostra que ela sabe a resposta, pois ela fez o bolo com um propósito. Mas todos os cientistas da nutrição, os bioquímicos, os químicos, os físicos e os matemáticos do mundo não saberão responder a essa pergunta — e não é um insulto às disciplinas deles declarar sua incapacidade de responder a ela. As disciplinas de cada um, que podem dar perguntas sobre a natureza e estrutura do bolo, isto é, que podem responder às perguntas sobre o “como”, não sabem responder às perguntas sobre “porquê” relacionadas ao propósito para o qual o bolo foi feito. De fato, a única maneira que jamais teremos de obter uma resposta depende de uma revelação feita por tia Matilde. Mas se ela não nos der sua resposta, o fato puro e simples é que nenhuma quantidade de análise científica nos esclarecerá sobre esse ponto.

peter_medawarAfirmar com Bertrand Russell que, devido ao fato de a ciência não poder dizer por que a tia Matilde fez o bolo, nós não podemos saber por que ela o fez é evidentemente falso. Tudo o que precisamos fazer é perguntar a ela. A alegação de que a ciência é o único caminho para a verdade é, em última análise, uma alegação indigna da própria ciência. Sir Peter Medawar, laureado  com o prêmio Nobel, ressalta esse ponto em seu excelente livro Conselho a um jovem cientista:

Não existe meio mais rápido para um cientista lançar descrédito sobre si mesmo e sua profissão do que declarar com franqueza — sobretudo quando nenhuma declaração de qualquer tipo se faz necessária — que a ciência sabe, ou em breve saberá, as respostas a todas as perguntas que merecem ser feitas, e que as perguntas que não admitem uma resposta científica são de certa forma “não perguntas” ou “pseudoperguntas” que apenas os simplórios fazem e apenas os ingênuos professam saber responder.

Medawar prossegue dizendo:

A existência de um limite para a ciência fica, todavia, evidente diante de sua incapacidade de responder a elementares perguntas infantis relativas ao início e o fim das coisas — questões tais como: “Como foi que tudo começou?”; “Para que estamos aqui?”; “Qual é a razão de viver?”

Ele acrescenta que é para a literatura imaginativa e para a religião que devemos dirigir na busca de respostas a essas perguntas.27 Francis Collins, diretor do Projeto Genoma Humano, também enfatiza isso: “O cientista é incapaz de responder a perguntas como ‘Por que o Universo passou a existir?’, ‘Qual é o significado da existência humana?’, ‘Que acontece depois que morremos?”’.22Está claro que não há nenhuma inconsistência envolvida em ser um cientista apaixonadamente comprometido no mais alto nível e ao mesmo tempo reconhecer que a ciência não pode responder a todos os tipos de perguntas, inclusive algumas das mais profundas que os seres humanos possam fazer.

É apenas justo afirmar também que Russell, apesar do fato de ter escrito as declarações citadas acima que soam muito científicas, mostrou em outros textos que não aprovava o cientificismo pleno. Contudo, ele de fato achava que todo conhecimento definitivo pertence à ciência, e isso com certeza soa como cientificismo incipiente, mas depois ele imediatamente acrescenta que as questões mais interessantes se situam fora da competência da ciência:

O mundo está dividido em mente e matéria e, sendo assim, o que é mente, o que é matéria? A mente está sujeita à matéria, ou é dotada de poderes independentes? O Universo tem alguma unidade ou objetivo? Tudo está evoluindo para o mesmo fim? Existem de fato leis da natureza, ou nós só acreditamos nelas devido ao nosso inato amor pela ordem? O homem é o que parece aos olhos do astrônomo, um diminuto bloco impuro de carbono e água arrastando-se sobre um minúsculo planeta sem importância? Ou ele é o que parece ser para Hamlet? Há um estilo de vida que é nobre e outro que é vil, ou todos os estilos de vida são simplesmente fúteis? […] Para perguntas desse tipo não se pode achar nenhuma resposta no laboratório.

O que estamos dizendo aqui é algo muito conhecido desde os tempos de Aristóteles, que de modo excepcional discriminou o que denominou as quatro causas: a causa material (o material de que é feito o bolo); a causa formal (a forma que os materiais são modelados); a causa eficiente (o trabalho da cozinheira ui Matilde); e a causa final (o propósito para o qual foi feito o bolo — o aniver-: irio de alguém). É essa quarta causa de Aristóteles, a causa final, que se situa fora do escopo da ciência.

Austin Farrar escreve:

Cada ciência escolhe um aspecto da realidade das coisas do mundo e mostra como ela funciona. Tudo o que se situa fora desse campo se situa fora do escopo da ciência. E sendo que Deus não faz parte do mundo, muito menos de um aspecto dele, nada do que se diga sobre Deus, por mais verdadeiro que seja, pode ser uma afirmação pertencente a alguma ciência.

A luz disso, as declarações de Atkins de que “não há nenhum motivo para supor que a ciência não possa tratar de todos os aspectos da existência” (já citada) e de que “não há nada que não possa ser entendido” parecem completamente absurdas.

Não causa surpresa que haja um alto preço a pagar por essa onicompetência que Atkins atribui à ciência:

A ciência não tem necessidade de um objetivo […] toda a extraordinária, maravilhosa riqueza do mundo pode ser expressa como o desenvolvimento a partir de um monturo de esterco de corrupção interligada e sem propósito. (Creation Revisited,  p. 1)

Alguém pode se perguntar como a tia Matilde reagiria ao ver que essa é a explicação final para o fato de que ela fez o bolo para o aniversário do seu sobrinho Tiago, quando na verdade é a explicação máxima, da existência dela, do Tiago e do bolo de aniversário. E provável que ela até preferisse um “caldo primitivo” a um “monturo de esterco de corrupção”, se lhe fosse dado escolher.

Uma coisa é sugerir que a ciência não pode responder a questões sobre o propósito final. Outra coisa completamente diferente é descartar o propósito em si como uma ilusão porque a ciência não consegue lidar com ele. E, mesmo assim, Atkins está, de forma simples, levando seu materialismo a uma conclusão lógica — ou talvez não exatamente. No fim das contas, a existência de um “monturo de esterco” pressupõe a existência de criaturas capazes de produzir esterco! Bastante esquisito então pensar no esterco produzindo as criaturas. E se se trata de um “monturo de esterco” (de acordo com, poderíamos supor, a Segunda Lei da Termodinâmica), alguém poderia se perguntar como a corrupção é revertida. A mente fica perplexa.

Mas o que destrói o cientificismo é a brecha fatal da contradição que nele existe. O cientificismo não precisa ser refutado por argumentos externos: ele é autodestrutivo. Ele tem a mesma sina que teve outrora o princípio da verificação, que era o centro da filosofia do positivismo lógico. Pois a afirmação de que apenas a ciência pode levar à verdade não é deduzida da ciência. Não é uma afirmação científica, mas sim uma afirmação acerca da ciência, isto é, uma afirmação metacientífica. Portanto, se o princípio básico do cientificismo for verdadeiro, a afirmação que expressa o cientificismo deve ser falsa. O cientificismo refuta a si mesmo, donde se conclui que é incoerente.

A visão de Medawar de que a ciência é limitada não é, portanto, nenhum insulto à ciência. O caso é exatamente o contrário. São aqueles cientistas que fazem alegações exageradas a favor da ciência que levam a ciência parecer ridícula. Talvez sem querer e talvez sem ter consciência disso, eles desviaram-se do fazer ciência para o criar mitos — e mitos incoerentes além de tudo.

Antes de deixarmos a tia Matilde, deveríamos observar que sua simples história nos ajuda a esquadrinhar outra confusão comum. Vimos como o raciocínio científico por si só não pode descobrir por que ela fez o bolo; ela precisa revelar-nos o motivo. Mas isso não significa que a razão a partir desse ponto seja irrelevante ou inerte. O que acontece é o contrário. Pois entender o que ela diz quando nos conta para quem fez o bolo requer o uso da nossa razão. Também precisamos da razão para avaliar a credibilidade da explicação dela. Se ela disser que fez o bolo para seu sobrinho Tiago e nós sabemos que ela não tem um sobrinho com esse nome, duvidaremos de sua explicação; se sabemos que ela tem um sobrinho com esse nome, então a explicação fará sentido. Em outras palavras, a razão não se opõe à revelação — simplesmente acontece que sua revelação do propósito pelo qual ela fez o bolo fornece à razão uma informação à qual a razão, sem ajuda, não tem acesso. Mas a razão é absolutamente essencial para processar essa informação. A ideia central é que em casos nos quais a ciência não é nossa fonte de informação, não podemos de forma automática supor que a razão parou de funcionar e que as evidências já não são relevantes.

Assim, quando os teístas alegam a existência de Alguém que mantém com o Universo a mesma relação que a tia Matilde mantém com seu bolo e que esse Alguém revelou por que o Universo foi criado, eles não estão de modo algum abandonando a razão, a racionalidade e as evidências. Estão apenas afirmando que há certas questões às quais a razão sem ajuda não pode responder, e que para respondê-las precisamos de outra fonte de informação — nesse caso, precisamos za revelação de Deus, e para entendê-la e avaliá-la a razão é essencial. Era nesse espírito que Francis Bacon falava dos dois Livros de Deus — o Livro da Natureza e a Bíblia. A razão, a racionalidade e as evidências se aplicam a ambos.

Fonte: Por que a ciência não consegue enterrar Deus, de John C. Lennox

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