Outra visão que normalmente se difunde entre os cristãos quando algum desastre natural eclode é que tais acontecimentos são o julgamento de Deus. Novamente, assim como quando estávamos pensando sobre a maldição de Deus na terra, temos de afirmar que em um sentido geral há uma verdade bíblica operante nessa perspectiva. A Bíblia não nos dá outra opção a não ser aceitar a realidade do julgamento de Deus. Deus age na história humana e por meio da ordem criada. Da mesma forma, a Bíblia nos adverte que, se os homens e as sociedades ignoram as estruturas morais básicas que Deus estabeleceu para nossa vida na terra — incluindo o cuidado com a própria terra — então o mundo natural sofre os efeitos de nossa negligência intencional. E às vezes ele reage de volta. Talvez, em certo sentido, alguns dos efeitos do aquecimento global e da consequente mudança de clima, já que estão relacionados com a ganância e a poluição destrutiva do homem, sejam interpretações teologicamente como elementos que fazem parte do julgamento de Deus, mediados pela ordem natural.
No entanto, o que não devemos e não podemos presumir ou afirmar é que as pessoas que atualmente sofrem os efeitos de eventos naturais como terremotos, tsunamis, vulcões, furacões, inundações e assim por diante (relacionados ou completamente sem relação com a atividade humana) são mais pecadoras, e assim estão mais sujeitas ao julgamento de Deus do que aqueles que são afortunados o suficiente para viver em um lugar onde o desastre não chega. Uma coisa é dizer que talvez haja elementos do julgamento de Deus em ação na ordem natural como resultado da extensão da maldade humana. Outra coisa completamente diferente é dizer que as pessoas cujas vidas foram ceifadas ou devastadas pelos desastres naturais são as que diretamente merecem o julgamento de Deus.
Ainda assim, logo após o tsunami de dezembro de 2004, foi exatamente o que algumas pessoas fizeram, fazendo-me questionar se estava mais irado com Deus ou com as coisas terríveis que alguns cristãos se levantaram para dizer. E certo que fiquei profundamente triste quando um pastor enlutado do Sri Lanka, onde igrejas inteiras foram devastadas, me enviou um e-mail para perguntar se isso poderia ser interpretado como o julgamento de Deus aos cristãos de Sri Lanka. Por que ele deveria pensar que era, ou que eles eram mais merecedores do julgamento de Deus do que os cristãos da índia, da Inglaterra ou dos Estados Unidos?
O que dizer diante do site de uma igreja americana que afirmou que deveríamos agradecer porque 1900 cidadãos suecos foram mortos pelo julgamento de Deus por causa da perversidade das leis e da cultura sexualmente licenciosa da Suécia? De que forma esse tipo de insensibilidade absurda difere daquela das autoridades muçulmanas na Inglaterra que disseram que o que aconteceu foi julgamento de Alá sobre os turistas sexuais da Tailândia (que eram os mais improváveis de estarem entre aqueles que desfrutavam de um dia com a família na praia quando as ondas avançaram)? A arrogância estúpida e absurda ‘de tais respostas sobrepuja nossa imaginação.
Porém, a própria Bíblia ensina o contrário. O problema é que facilmente pegamos alguns aspectos do que a Bíblia ensina, invertemos a lógica e aplicamos de maneira errada. O que significa isso?
A BÍBLIA E OS DESASTRES “NATURAIS”
A Bíblia realmente contém exemplos de Deus usando a natureza, ou as forças naturais, como agentes de seu julgamento ou salvação (por exemplo, i» dilúvio; a divisão e o reencontro do mar no êxodo; o transbordamento de um rio em Juízes 4-5; granizos destruindo um inimigo). Porém, essas narrativas são dadas com uma interpretação clara e autoritária do texto, i|iie é como esses eventos devem ser entendidos — naquela época e por leitores posteriores. Então a Bíblia nos diz que Deus usa alguns (apesar de não serem muitos) desastres naturais como atos de julgamento divino.
Porém, não podemos inverter a lógica e afirmar que todo ou qualquer desastre natural é um ato de julgamento divino sobre alguém. E certamente não temos uma interpretação autoritariamente bíblica que nos dá o direito dogmático de explicar eventos contemporâneos dessa forma. Pelo contrário, a Bíblia na verdade nos desencoraja a afirmar que pessoas que sofrem algum desastre são vítimas do julgamento de Deus por causa de seus pecados particulares.
Jesus nos dá os exemplos mais claros da rejeição de tão pervertida “lógica”. Em João 9,1-3 perguntaram a Jesus se um homem que nascera cego (e havia sido vítima do julgamento de Deus por causa de seu pecado nu do pecado de seus pais, e Jesus respondeu que nenhuma das respostas estava correta. A cegueira do homem não era uma questão de julgamento de Deus ou de pecado.
Em Lucas 13,1-5, Jesus responde a dois incidentes locais. Um foi um caso de mal moral — um ato de selvageria pelo governador romano que requeria a vida de alguns galileus; o outro foi um caso de mal natural ou acidental — a queda de uma torre, provavelmente em um local de construção, que matou dezoito pessoas em Jerusalém. Jesus perguntou (ou talvez teriam perguntado a ele) se esses acontecimentos provavam que aqueles que foram mortos eram mais pecadores do que os outros — ou seja, que sua morte teria sido o julgamento específico de Deus sobre eles. Novamente, em ambos os casos, Jesus enfaticamente responde que não. Jesus rejeita a simples explicação de que quando os desastres acontecem deve ser o julgamento de Deus pelo pecado de alguém.
O livro de Jó discutiu esse ponto de forma bem profunda. Os amigos de Jó insistiram que os desastres que aconteceram com ele eram o julgamento de Deus por sua maldade. Todavia Deus e os leitores sabem que os amigos estavam errados. E Jó, apesar de não saber o que os leitores sabem, se recusou a acreditar que os amigos estavam certos sobre ele, independentemente do quanto sua teologia estava correta. Seu sofrimento era um teste, mas definitivamente não era um julgamento. Os amigos vieram com várias afirmações teológicas em geral verdadeiras sobre pecado e julgamento, mas fizeram uma aplicação específica falsa ao sofrimento particular de Jó. Os três amigos de Jó eram ortodoxos e bíblicos em sua teologia, mas totalmente errados em seu diagnóstico e desastrosamente insensíveis em sua aplicação pastoral. Infelizmente muitos cristãos seguem seu exemplo, seja respondendo aos desastres em grande escala ou à doença e ao sofrimento de indivíduos.
Entretanto, Jesus diz que a cegueira do homem criou uma oportunidade para que a glória de Deus se manifestasse (quando Jesus o curou). E Jesus também usou os desastres locais como um aviso para as pessoas se arrependerem. Porém, novamente devemos tomar cuidado para não reverter o que Jesus disse sobre os resultados desses casos em um princípio de causa. Jesus não estava dizendo que Deus fez Pilatos assassinar as pessoas ou fez a torre cair e matar as pessoas, com o propósito de emitir um aviso para todos os outros. Ele simplesmente usou esses eventos de forma bem legítima, para apontar para a brevidade da vida, o possível aparecimento repentino da morte e a necessidade de se arrepender aqui e agora.
Da mesma forma, podemos certamente concordar que o tsunami nos da um quase apavorante aviso de que nossas vidas estão em constante vulnerabilidade nesse mundo e podem ser ceifadas em um instante nas mais rotineiras situações e nos momentos mais inesperados. Se isso levou algumas pessoas a refletir sobre a vida e a morte, e a chegar a isto em arrependimento e fé, podemos agradecer por isso. Porém, seria terrível sugerir que “Deus fez isso por essa razão”. Que o fato de 250 mil pessoas terem sido mortas em poucas horas foi uma terrível demonstração da fragilidade da vida humana. Que Deus de alguma forma fez isso “de propósito”, só para dar para o restante de nós um aviso. E grotesco.
Então, se essas são as explicações erradas, qual seria a certa?
Não existe, por mais que eu consulte ou encontre nas Escrituras, nenhuma explicação “certa” para o motivo de as coisas acontecerem. A ciência pode nos dizer as causas naturais, e elas são suficientemente esclarecedoras. É a façanha, mas também o limite, da explicação científica sobre o que “realmente aconteceu”. Porém, nem a ciência, nem a fé podem fornecer uma resposta profunda ou significativa ou encontrar um propósito para um desastre. Então ficamos com a angústia perplexa do protesto e do lamento. “Deus, como você pode permitir tais coisas? Por que você não as impede?”. Não acho que é errado dizer isso, mesmo sabendo que nenhuma resposta virá dos céus.
Quando já não temos explicações, ou rejeitamos aquelas que consideramos, o que fazemos? Lamentamos e protestamos. Simplesmente dizemos que não é justo. Gritamos para Deus irados. Dizemos a ele que não entendemos e queremos saber por que ele não impediu isso.
É errado agir assim? Será que os verdadeiros cristãos não deveriam fazer isso no mesmo raciocínio que diz que “homens não choram”? Não é pecado irar contra Deus? Novamente volto à Bíblia e percebo que a it posta é simplesmente “não”. Ou, pelo menos, descubro que Deus permite à expressão uma grande dose de ira, mesmo que, às vezes, ele corrija esse comportamento, quando ele ameaça levar a pessoa ao pecado ou à rebelião (como no caso de Jeremias 15,19-21).
Fonte: O Deus que não entendo, de Christopher Wright