Questão: Qual foi papel da Inquisição na Igreja Católica?
Resposta: Conforme o Papa João Paulo II, “A inquisição pertence a uma fase atormentada da história da Igreja, à qual… os cristãos [deveriam] examinar com um espírito de sinceridade e mente aberta” (1) Para acessarmos a Inquisição propriamente, devemos distinguir o princípio que a embasava das ações dos responsáveis pela implementação de tais princípios. O princípio – de que a Igreja deve guardar a fé contra seus desvios – é uma obrigação imposta pela lei divina (cf. Mt. 18,18; 2 Tim. 1,14). As ações tomadas para implementar o processo algumas vezes eram questionáveis e mesmo deploráveis. Ainda assim, por conta de séculos de desinformação, nós devemos ter o cuidado de distinguir fatos e ficção.
Discussão: Os católicos têm o dever de compreender o que aconteceu durante a Inquisição e o porquê. Tal compreensão nos permite distinguir o que é defensável do que não é.
O uso da Inquisição contra as heresias
Durante o império de Constantino (337 dC) a Igreja passou da posição de perseguida a protegida e preocupações políticas e teológicas passaram a sobreporem-se. O bem da Igreja deste modo passou a ser visto como integrante do bem do Estado. Consequentemente, a partir do 4° Século da Era Cristã, os imperadores não apenas convocaram concílios contra heresias, mas também estipularam uma série de penalidades civis para quem as praticasse. Tais penalidades variaram entre multas e a pena capital, conforme verifica-se no famoso Corpus Juris Civilis (565 dC) do Imperador Justiniano. A Inquisição foi um dos meios pelos quais as cortes seculares e católicas lidaram com as heresias.
Ao final do primeiro milênio da Era Cristã, a maior parte da Europa Ocidental já estava convertida ao cristianismo. Nessa época, havia pouca separação entre Estado e Igreja. Ou seja, órgãos e sistemas legais eclesiásticos e seculares se sobrepunham. As decisões prolatadas por um dos sistemas era reconhecida pelo outro. Por isso, os poderes seculares e a Igreja, mesmo com muitas discordâncias, desenvolveram uma base comum na proteção do bem comum. Um efeito de tal circunstância era que a política secular não estava inteiramente separada da Igreja. Ao invés disso, questões políticas e religiosas estavam intrinsecamente interligadas, e heresias religiosas eram consideradas como um tipo de traição política.
A heresia cátara
O catarismo (do grego katharos, que significa puro) era uma heresia que ameaçava praticamente todas as linhas do Credo. Embora houvessem muitas outras heresias enfrentadas pelas cortes inquisitoriais (incluindo valdenses, beguinas, fraticellis e franciscanos espirituais), o catarismo foi a mais persistente, sendo, portanto, a heresia contra a qual teve início do uso da Inquisição pela Igreja Católica.
Os cátaros acreditavam que o mundo físico, o mundo visível, fora criado por um deus mal e que o mundo invisível e espiritual criado por um deus bom. Eles acreditavam que a salvação viria por meio da purificação de suas almas imateriais dos males da criação física. Esse dualismo contrariava diretamente a verdade sobre o bem natural e sobrenatural da criação. Quando a heresia cátara tornou-se visível, durante o ano 1000, a primeira resposta a ela foi desorganizada, sem estrutura e disciplina. Como resultado, o catarismo espalhou-se rapidamente do Leste Europeu até o sul da Alemanha, norte da Itália e sul da França. Podemos notar, humildemente, que parte da causa desse rápido crescimento da heresia pode ser creditada ao deplorável comportamento de muitos clérigos, especialmente no sul da frança, onde estes estavam mais compromissados com a “madame luxúria” do que com a “senhora pobreza”. Em contraste a tais deficiências e abusos, os cátaros viviam na pobreza e obedeciam a um asceticismo estrito.
Durante o século seguinte, legisladores seculares, Concílios da Igreja e papas pediram pela investigação e perseguição da heresia, bem como pela punição dos heréticos que não se arrependessem. Mas tais esforços prosseguiam desorganizados e ineficientes.
Para remediar a resposta desorganizada à heresia, o Papa Gregório IX (1227-41) assumiu a responsabilidade de colocar a investigação da heresia sob a disciplina da Santa Sé. O que tratamos sob o termo “inquisição” é simplesmente o tribunal eclesiástico com juizes especialmente apontados, que respondem ao bispo local e ao Papa, cuja tarefa era investigar acusações de heresia de forma sistemática e justa. A origem da forma do inquérito judicial, o inquisitio, não foi a lei da Igreja, mas o direito romano, incorporado nos procedimentos da lei civil e canônica. O Papa Gregório sabiamente confiou às novas ordens mendicantes dos franciscanos e dominicanos a lida com a maior parte do trabalho inquisitorial.
A primeira fase da Inquisição começou a expirar por volta de 1300 quando as [principais] heresias desapareceram. A próxima fase começou em 1478, quando, por requisição dos soberanos espanhóis Fernando e Isabel, o Papa Sisto IV (1471-84) publicou uma bula papal permitindo a criação da Inquisição Espanhola. Essa durou até sua abolição formal em 1834, embora suas atividades mais ferventes tenham tido lugar durante os séculos XV e XVI.
A Inquisição Espanhola é a mais notória das inquisições por três razões. Primeiro, foi a mais cruel precisamente por ter sido administrada pelo governo secular. Segundo, estava ocupada, em grande parte, com convertidos. Estes eram judeus convertidos sob coação ou conveniência social e que eram suspeitos de praticarem secretamente a fé judaica. Terceiro, por ter sido o alvo principal dos protestantes e oponentes seculares do catolicismo, que fabricaram – por meio de escritos, “histórias”, peças e mesmo pinturas – crueldades e excessos para além do que de fato ocorreu.
Com o advento da Reforma no Século XVI, teve início outra fase da Inquisição. Alarmado com o crescimento do protestantismo, o Papa Paulo III (1534-49) estabeleceu a Inquisição Romana em 1542. O ato mais famoso desta talvez tenha sido a condenação de Galileu pela violação da determinação de 1616 que o proibia de ensinar ou defender a tese de que o sol é o centro do universo. A Inquisição Romana recebeu vários nomes desde sua criação. Nos tempos de Galileu, era conhecida como Congregação do Santo Ofício. O Papa João Paulo II deu para ela seu nome atual, Congregação para a Doutrina da Fé.
Avaliando a Inquisição
O princípio sobre o qual a Inquisição foi construída é totalmente defensável; deste modo, os católicos têm em todo o lugar o dever de defendê-lo. A Igreja recebeu do próprio Cristo a missão de salvaguardar o depósito da fé de distorções ou da corrupção. (cf. Mt. 28,16-20; Mc. 16,14-20; Jn. 21,15-19; 1 Tess. 2,13; Jd 3; CCE [Catecismo da Igreja Católica], 84-90, 172-75, 813-16).
No entanto, devemos distinguir entre este princípio e os meios pelos quais a fé deveria ter sido defendida. A própria Igreja, conforme evidencia o Catecismo, não defende as lamentáveis práticas da Inquisição.
No passado, práticas cruéis eram regularmente utilizadas por governos legítimos visando a manutenção da lei e da ordem, muitas vezes sem protestos por parte dos Pastores da Igreja, que adotaram eles mesmos em seus tribunais as prescrições da Lei Romana sobre a tortura. Apesar de tais fatos serem lamentáveis, a Igreja sempre ensinou o dever de clemência e misericórdia. Ela proibiu que clérigos derramassem sangue [dos apenados pela Inquisição]. Nos temos atuais se tornou evidente que tais práticas cruéis não são nem necessárias para a obtenção da ordem pública e nem em conformidade com os direitos legítimos da pessoa humana. Ao contrário, elas levam a outras ainda mais degradantes. É necessário trabalhar por sua abolição. E devemos rezar pelas vítimas e por seus algozes.
Além disso, a Igreja não proclama que os indivíduos em Cristo, meramente por serem parte de Seu Corpo, sejam infalíveis com Ele. Pelo contrário,
CCE 827. «Enquanto que Cristo, santo e inocente, sem mancha, não conheceu o pecado, mas veio somente expiar os pecados do povo, a Igreja, que no seu próprio seio encerra pecadores, é simultaneamente santa e chamada a purificar-se, prosseguindo constantemente no seu esforço de penitência e renovação». Todos os membros da Igreja, inclusive os seus ministros, devem reconhecer-se pecadores. Em todos eles, o joio do pecado encontra-se ainda misturado com a boa semente do Evangelho até ao fim dos tempos.
Não devemos perder de vista que o catarismo (e as outras heresias) tornou-se influentes na medida em que os pastores da Igreja falharam nas obrigações que eram próprias de seus cargos. A resposta adequada à profecia cátara não deveria ter sido uma oposição violenta, mas arrependimento, uma adesão mais fervorosa à pobreza e à santidade por parte daqueles que guardavam a ortodoxia, acompanhada de um ensinamento zeloso da verdadeira fé – respostas dadas por São Francisco e por São Domingos.
O que realmente aconteceu?
Com tudo o que foi dito até aqui, devemos distinguir os fatos da Inquisição da ficção. Como recentemente demonstraram os estudiosos, tanto protestantes quanto secularistas, do Século XVI até o presente, exageraram grandemente os males da Inquisição visando favorecer seus próprios objetivos, transformando em demônios de palha inquisidores e mesmo Papas. Tristemente, tais erros foram repetidos com tanta frequência que se tornaram “fatos”.
Embora tais exageros tenham criado “fatos” desde a ficção, há alguma verdade nos abusos que os católicos devem admitir. Homens arrependidos foram condenados por heresias e entregues às autoridades civis para punição, embora nem sempre as autoridades da Igreja concordassem com as punições administradas pelo Estado. Ao entregar hereges condenados ao poder secular, a Igreja sabia que estava entregando-os para penas que variavam do aprisionamento à fogueira. Além disso, mesmo com as precauções procedimentais, houve inquisidores que não seguiam as leis da Igreja e que prontamente entregavam um número significativo de “hereges” para que fossem queimados vivos. No entanto, panfleteiros anticatólicos e historiadores aumentaram de forma grosseira os números das mortes, afirmando que milhões morreram na fogueira. Embora o número real seja bem menor (entre três e cinco mil), tais mortes foram bem reais e são lamentáveis.
Também é lamentavelmente verdadeiro que a Igreja, seguindo os costumes judiciais da época, admitiu a tortura como parte do procedimento judicial. A aprovação da tortura chegou ao topo da hierarquia, como o Papa Inocêncio IV, em sua bula Ad extirpanda (1252), atesta. No entanto, o uso da tortura durante o inquérito judicial não foi, ao contrário do que afirmam seus detratores, uma invenção da Igreja.
Pouco antes dos tempos da Inquisição, o Direito Romano passou a dispor quanto aos costumes judiciais locais da Europa Ocidental, permitindo a tortura judicial em algumas circunstâncias. Sob a interpretação medieval da lei, os acusados [da prática de] um crime capital poderiam ser condenados se houvesse plena convicção a respeito de sua culpa – tal convicção que deveria ser obtida pelo depoimento de duas testemunhas, pela prisão em flagrante, ou pela confissão pessoal. Se faltassem tais meios de prova, e todos os demais indícios apontassem para a culpa do acusado, a tortura poderia ser utilizada para extrair a confissão. Para ser considerada válida a confissão obtida sob tortura, o acusado deveria confessar livremente seu crime no dia seguinte.
A respeito do uso da tortura e da pena capital, a Igreja não inventou tais práticas, mas as regulou e codificou [tais práticas] que já existiam civil e judicialmente. Adicionalmente, é importante afirmar que o efeito principal e o objetivo da ação da Igreja era o de suavizar a dureza primitiva dos poderes seculares e corrigir os abusos dos inquisidores que, individualmente, fossem arbitrários ou cruéis.
Aprendendo com os nossos erros.
Apesar de tais fatos, o Papa João Paulo II nos avisa:
Considerar os fatores mitigadores não exonera a Igreja da obrigação de expressar profundo arrependimento pela fraqueza de tantos de seus filhos e filhas que mancharam sua face, impedindo-a de mirar plenamente a imagem de seu Senhor crucificado, a vítima suprema do amor paciente e da humilde mansidão. Desses momentos dolorosos do passado uma lição pode ser tirada para o futuro, chamando todos os cristãos para aderirem plenamente ao sublime princípio afirmado pelo Concilio: “A verdade não pode impor a si mesma, exceto pela virtude de sua própria verdade, e impõe-se à mente com gentileza e força”. (2)
Notas de rodapé
1- Papa João Paulo II, “Discurso para o Simpósio Internacional sobre a Inquisição”, proferido em 31 de outubro de 1998.
2- Papa João Paulo II, Tertio Millennio Adveniente, no. 35,
A missão do Magistério está ligada ao caráter definitivo da aliança estabelecida por Deus com o Seu povo em Cristo. É tarefa deste Magistério preservar o povo de Deus a partir de desvios e deserções e garantir-lhes a possibilidade objetiva de professar a verdadeira fé sem erros. Assim, o dever pastoral do Magistério visa cuidar para que o Povo de Deus permaneça na verdade que liberta (Catecismo, n. 890).
Fonte: http://catholiceducation.org/articles/apologetics/ap0051.html
Citação do CCE: http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p1s2cap3_683-1065_po.html
Tradução: Rafael Pereira de Menezes