No post de hoje, gostaria de falar sobre uma objeção comumente oferecida contra o Argumento Ontológico. Nela, troca-se a ideia de Deus por algum outro tipo de conceito, realizando uma paródia do argumento original. Esse tipo de objeção foi primeiramente oferecida pelo monge Gaunilo, um contemporâneo de Anselmo, na forma da Ilha Perfeita, e sobrevive até hoje.
Gaunilo escreveu uma resposta a Anselmo chamada “Em Defesa do Tolo”. Reproduzo a parte mais importante abaixo:
Por exemplo: é dito que em algum lugar do oceano há uma ilha, que, por causa da dificuldade, ou ao invés da impossibilidade, de descobri-la, é chamada de Ilha Perdida. E eles dizem que essa ilha tem um valor inestimável de todo tipo de riquezas e delicadezas em maior abundância do que é dito sobre a Ilha dos Bem-Aventurados; e, não tendo nenhum dono ou habitantes, ela é mais excelente que todos os outros países, os quais são habitados pelo homem, na abundância do que lá está guardado.
Agora, se alguém me disser que existe tal ilha, eu poderia facilmente entender suas palavras, nas quais não há dificuldade. Mas suponha que ele continue falando, como se fosse uma inferência lógica: “Você não pode mais duvidar que essa ilha que é mais excelente que todas as ilhas existe em algum lugar, uma vez que você não tem dúvidas que ela existe em seu entendimento. E uma vez que é mais excelente não estar apenas no entendimento, mas existir ao mesmo tempo e na realidade, por essa razão ela deve existir. Pois se não existir, qualquer ilha que realmente existe seria mais excelente do que ela; e então a ilha já entendida por você como a sendo a mais excelente não será mais a ilha mais excelente.”
Se um homem tentar me provar por esse raciocínio que tal ilha realmente existe, e que sua existência não deve mais ser motivo de dúvida, ou eu deveria acreditar que ele está gracejando, ou pensar em quem considerar como o maior dos tolos; eu mesmo, supondo que eu permita esse tipo de prova; ou ele, se ele supor que conseguiu estabelecer com certeza a existência dessa ilha.
Gaunilo de Marmoutiers, Em Defesa do Tolo
Como podemos ver, o procedimento de Gaunilo foi uma refutação através do reductio ad absurdum, que propõe a fragilidade de um pensamento ou uma conclusão demonstrando que, se empregado em uma nova situação, levará a algo absurdo; resta que o pensamento ou a conclusão original devem ser falsas. Se o maior ser possível deve ser aceito como existente por certo tipo de raciocínio, então a maior ilha possível também; mas não podemos aceitar a existência dessa Ilha, pois isso seria absurdo. Logo, não podemos aceitar a existência de Deus por esse mesmo tipo de raciocínio.
O argumento de Gaunilo não é exatamente paralelo ao argumento de Anselmo; o primeiro fala de “maior excelência”, enquanto o segundo fala daquilo que “não pode ser concebido como maior”. Feita essa observação, seja como for, o argumento de Gaunilo pode ser apresentado da seguinte forma:
- (1) É possível imaginar uma Ilha ‘I’ com uma excelência máxima; (premissa)
- (2) Essa ilha existe no entendimento; [de (1)]
- (3) Uma ilha que existe tanto no entendimento quanto na realidade é maior do que uma ilha que existe apenas no entendimento; (premissa)
- (4) Então, se a ilha ‘I’ existe apenas no entendimento, nós podemos imaginar uma ilha maior do que a Ilha ‘I’ (que é a ilha com a excelência máxima); [de (1) e (3)]
- (5) Mas não podemos imaginar uma ilha que tenha mais excelência do que Ilha com a excelência máxima; [(contradição)]
- (6) Logo, a Ilha ‘I’ precisa existir na realidade;
Talvez soe como uma boa refutação, à primeira vista, mas, de fato, não é.
A premissa (1) utilizada por Gaunilo é falsa. A ideia de uma ilha com excelência máxima não é uma ideia possível; falar da “maior ilha que se pode conceber” é como falar do “maior número natural que se pode conceber” ou da “linha mais torta que se pode conceber”. Não é possível existir “um número maior do que todos os outros concebíveis” nem “uma linha mais torta que se pode conceber”; os tipos de propriedades que faz algo ser uma ilha excelente não são o tipo de propriedades que admitem o conceito de excelência máxima.
Deixe-me explicar melhor o último ponto. As qualidades que fazem de uma ilha ser uma ilha excelente – vamos dizer que o número de garotas atraentes dançando (“p1”), o número de palmeiras nas quais você pode descansar do sol (“p2”), o número de bebidas refrescantes que você pode ter em mãos (“p3”) – não são os tipos de qualidades que têm um máximo intrínseco. Não importa o quanto você imagine do número de garotas, palmeiras ou bebidas, sempre será possível imaginar mais e mais. Isso é o mesmo que dizer que não importa o nível de p1, p2 ou p3 que você tenha em uma ilha, não há um nível tal do tipo que será impossível conceber um nível maior ainda. Então, o próprio conceito de uma ilha com excelência máxima é incoerente e inconsistente – visto que suas qualidades sempre podendo ser maiores, o seus predicados não conseguem acompanhar conceitualmente o seu sujeito.
Mas o mesmo não se aplica as propriedades que damos para Deus, como poder ou conhecimento. Esse tipo de propriedade é o tipo da qual existe um máximo intrínseco.Se um sujeito S tem todo conhecimento, então para toda proposição p existente, Ssabe se p é verdade ou não. E não há como ter mais conhecimento do que isso; esse é um nível simplesmente inultrapassável de conhecimento. O mesmo vale para o poder; para toda ação A que pode ser feita, S tem o poder de fazê-la. Ser onipotente é ter o tipo de poder que não pode ser ultrapassado. Muito diferentemente de uma ilha, as propriedades de Deus tem um limite máximo ao qual nada maior pode ser concebido.
É o ponto pacífico que noções incoerentes não tem alcance ontológico; não há o que se falar de um solteiro casado na realidade, por exemplo. Dessa forma, sua existência é impossível. Se a noção da “Ilha mais perfeita que se pode conceber” ou da “Ilha com excelência máxima” é incoerente, então também é impossível sua existência. Assim, o Argumento de Gaunilo é falso.
E o mesmo vale para qualquer outra tentativa de paródia que subscreva um predicado de “maior x que se pode conceber” a um ser essencialmente limitado. Pense na maior pizza ou no maior leão que se pode conceber: quantos pedaços de pepperoni (ou calabresa – qual dos dois sabores faz uma pizza ser mais excelente?) deve ter essa pizza? Quantos dentes e quantos zebras por minuto esse leão deveria ser capaz de caçar? O quão limitado espacialmente deve ser o maior leão concebível? Se ele não possui nenhum tipo de limitação em seu espaço físico, como ainda pode ser essencialmente um leão?
Enfim, aproveitando o exemplo culinário, podemos devorar facilmente essas paródias – com uma pitada de sal e outra de lógica. Basta lembrar de três pontos:
- (1) O predicado “excelência máxima” ou “maior que pode ser concebido” só pode ser aplicado a seres cujas propriedades sejam do tipo que p1, p2 e p3 tenham possivelmente uma excelência máxima ou uma forma máxima que pode ser concebida (como a onisciência de Deus);
- (2) Se os predicados não são do tipo que podem ter uma excelência máxima, então o próprio conceito C desse ser é incoerente;
- (3) Se o conceito C é incoerente, então C não pode existir na realidade;
Dessa forma, o Argumento Ontológico (de Anselmo ou em suas várias versões) continua intacto a essa objeção.