Na Europa ocidental, após a queda do Império Romano, a única instituição poderosa e universal era a Igreja. Ser membro dessa associação era teoricamente voluntário e praticamente obrigatório. Ser desligado de sua comunhão era castigo tamanho que, até o século XVI, os próprios reis tremiam diante da ameaça de excomunhão. Da menor das aldeias, com sua igreja paroquial, à maior das cidades, com sua catedral, suas numerosas igrejas, seus mosteiros e santuários, a Igreja estava visivelmente presente em todas as comunidades: suas torres eram o primeiro objeto que o viajante divisava no horizonte e sua cruz era o último símbolo levantado diante dos olhos do agonizante
“Numa cultura assinalada por espantosas diversidades de dialeto, direito, culinária, pesos e medidas, cunhagem, a Igreja oferecia uma morada comum, na verdade um abrigo universal: o mesmo credo, os mesmos ofícios, as mesmas missas, realizadas com os mesmos gestos, na mesma ordem, para o mesmo fim, de um a outro extremo da Europa. Nunca a rigorosa uniformidade romana serviu melhor à humanidade que durante esse período. Nos ofícios mais importantes da vida, até a menor das aldeias achava-se no plano de uma metrópole. A Igreja Universal dava a todas as comunidades, pequenas e grandes, um propósito comum” (Lewis Mumford, op. cit., págs. 290-1).
Torna-se difícil, se não impossível para o homem de hoje sentir em seu coração o que se passava naqueles tempos. Para ele, a vida se alonga, a morte se protrai escondida nas brumas de um futuro longínquo, como algo irreal que não o preocupa e que, por isso, não lhe pauta o comportamento. O mundo terreno possui demasiados atrativos, as pessoas vivem ocupadas demais, a preocupação econômica tende a tudo dominar. A intensa propaganda consumista leva à ânsia de prazeres e de bens materiais, antepondo-se à imagem do sobrenatural.
Antes, ao inverso, a simplicidade da vida, a tenaz pregação catequista feita pela Igreja, as ideias de Deus, da morte, de céu e de inferno sempre presentes, tudo isso envolvia o indivíduo numa atmosfera de forte religiosidade. A Igreja se revelava por toda parte, com sua pompa, com seus solenes ritos litúrgicos, com procissões, festas, penitências, peregrinações. Junto ao povo estavam bispos, padres, freiras, monges, frades, pequenos curas de aldeia, ocupando-se das escolas, das universidades, dos hospitais, dos asilos. Os estabelecimentos religiosos em geral constituíam o repositório da cultura e das artes, pintura, escultura, arquitetura, música. A inteira existência dos homens era ritmada pelo calendário cristão, cada dia com o seu santo; pelos ritos religiosos; pelos sinos que repicavam, desde o amanhecer até à hora da Ave-Maria.
Ao mesmo tempo, a Igreja dava segurança ao seu rebanho, como detentora única de uma verdade e de uma fé essenciais à salvação humana. Daí o seu fervor missionário, a sua vocação universal, ansiando por espalhar a “Boa Nova”: Cristo, Filho de Deus, veio à Terra para ensinar o caminho da verdade a todos os povos, e morreu na cruz para nos salvar.
A vocação missionária é característica do cristianismo (assim também como foi outrora muito forte no antigo judaísmo: cfr. J. Lortz, op. cit., I, pág. 540; M. Hadas-Lebel, Le Prosélytisme Juif, etc., in C. Kannengiesser, op. cit., pág. 23 e segs.). Outros credos se encerram em fronteiras nacionais, ou se limitam a grupos humanos restritos, e se mantêm indiferentes aos que estão fora, não os buscando para entrarem. Ou então, quando seus seguidores dominam pela força outros povos, apenas lhes impõem, com seus costumes, a própria fé.
O cristianismo almeja convencer, converter e salvar. As expedições marítimas que, a partir do século XV, saíam da Europa em busca de descobrimentos, estavam sempre carregadas de ardor religioso, levando missionários para evangelizar os infiéis. As caravelas portuguesas e espanholas ostentavam, bem visível nas velas, a cruz de Cristo. Vasco da Gama, na véspera do seu embarque, passou a noite orando na capela de Nossa Senhora de Belém, às margens do Tejo. Pedro Álvares Cabral já trouxe em sua esquadra dezessete missionários, dos quais nove padres seculares, mais oito fran- ciscanos; e, tão logo chegou ao Brasil, teve entre as preocupações primeiras mandar rezar uma missa.
Sintamos agora este problema, tal como o viam espanhóis e portugueses. No momento em que, com tantos sacrifícios, perigos e tão grande fervor religioso, eles se lançavam à evangelização de povos longínquos, em outros continentes, forçosamente lhes parecia intolerável que em sua própria casa, na península ibérica, houvesse grupos de diferentes raças, de outros credos, de estranhos costumes, mouros e judeus que permaneciam fechados em si mesmos, hostis ao ideal cristão; e que ademais, segundo se propalavra, até mesmo zombavam da Igreja, escarneciam das coisas sagradas e profanavam objetos do culto.
- 1. Era incomum, quase inconcebível, na época, uma sociedade religiosamente pluralista, cada grupo com sua crença, seus templos e seus cultos, todos convivendo harmonicamente em clima de liberdade e mútuo respeito. Isso só se tornou realmente viável há muito pouco tempo, na História da humanidade.
O fator religioso era não só uma vertente do humano que ligava o indivíduo a Deus, mas também poderosa força de união ou de separação entre os homens, conforme professassem ou não o mesmo credo. Quando a Reforma penetrou na França e na Alemanha, protestantes e católicos não se respeitaram, mas se entredevoraram.
Como observa Max Savelle, “o século e meio que se seguiram à publicação das Noventa e Cinco Teses de Lutero foram um período de quase constante guerra religiosa. No curso dessa guerra, incontáveis vidas se perderam, imensurável soma de propriedades se destruiu, incalculável dor se infligiu em nome de Jesus de Nazaré e para fins de salvação humana. A razão disso era clara e simples: a religião identificava-se com o Poder; portanto, a dissidência religiosa significava rebelião traiçoeira contra o Poder estabelecido. Isto era verdade tanto nas terras protestantes quanto nas católicas” (op. cit., pág. 398).
Critica-se a Inquisição, mas, realmente, a História apresenta triste rosário de intolerâncias, de lutas, morticínios e perseguições religiosas. É certo que, quase invariavelmente, outros fatores concorreram para isso, tais como interesses econômicos, políticos, raciais, etc., mas nesses movimentos encontramos também, em maior ou menor medida, o componente religioso.
Comecemos pela Roma pagã, que torturou, espoliou e massacrou incontável número de cristãos, pelo só fato de serem cristãos[1]. O islamismo, mais tarde, sempre considerou da sua essência submeter todo o mundo a ferro e fogo. Com as expansões árabe e turca, vagas muçulmanas varreram o cristianismo da Ásia Menor, do Norte da África e de algumas regiões da Europa.
Os católicos ortodoxos da Europa oriental, toda vez que assumiram o Poder, excluíram os católicos romanos. Com a Reforma, nos séculos XVI e XVII lutas ferozes foram travadas na Alemanha. Idem na França, onde os calvinistas eram chamados de “huguenotes” e sucessivas guerras ocorreram, inclusive, em 24 de agosto de 1572, com a imensa carnificina que vitimou os protestantes na chamada “noite de São Bartolomeu”. Na Espanha e em Portugal, ao contrário, a Reforma não fez progressos, de sorte que o catolicismo ali foi pouco perturbado.
Na Inglaterra, a partir do cisma de Henrique VIII, a rebelião dos católicos foi sempre afogada pela violência. A rainha Isabel I “perseguiu igualmente católicos e calvinistas radicais ou «puritanos». As medidas que empregou para impor a nova fé encheram o reino de crimes e de sangue: os puritanos emigraram, na sua maioria, para a Holanda; os católicos sofreram tais perseguições, que, quando Isabel morreu (1603), não representavam mais de 120.000 almas” (Mattoso, op. cit., pág. 328). Na Escócia, sob a liderança do calvinista João Knox, as violências contra os católicos também foram imensas.
No curso dos séculos, os missionários cristãos vêm sendo massacrados em todo o redor do mundo.
O mesmo panorama agressivo, aliás, persiste, indefinidamente, chegando aos nossos dias. O México durante quarenta anos (1900-1940) perseguiu a Igreja católica. Na segunda década do século XX, os turcos muçulmanos dizimaram e dispersaram a comunidade cristã armênia, há muito tempo radicada no país, e afirma-se que se perderam perto de um milhão e meio de membros desse povo. A tremenda guerra civil espanhola (1936-39), entre os “brancos”, religiosos, e os “vermelhos”, ateus, foi de brutal atrocidade. Como diz Pierre Vilar, as violências dos vermelhos foram terríveis “porque desordenadas, e terríveis as dos brancos, porque obedecendo a ordens e feitas em ordem”. […] “Padres abençoaram os piores fuzilamentos. Multidões perseguiram os religiosos até seus túmulos” (op. cit., pág. 108).
Lembremos outrossim os insolúveis conflitos, com componentes religiosos, que hoje se passam na índia e no Paquistão; no Líbano, com a sua comunidade cristã; em Israel; na Irlanda do Norte; na
Iugoslávia; no Irã, onde se instalou, após cruenta luta, um governo de fanáticos religiosos; conflitos que vêm sacudindo, enfim, o quase inteiro mundo muçulmano.
Nestes dias, como fenômeno ainda não solucionado, um obscuro escritor de nome Salman Rushdie, de nacionalidade indiana e radicado na Inglaterra, publicou o livro Versos Satânicos, que passaria despercebido não fosse a acusação de que é desrespeitoso para com Maomé. Tanto bastou para que facções islâmicas lhe impusessem a pena de morte, a ser cumprida pelo primeiro muçulmano que o encontrar.
Na Rússia, na China e em outros países comunistas se instaurou oficialmente e de forma obrigatória a “religião” do ateísmo, uma religião às avessas, mas com seus “santos”, Marx e Lenine, cujas palavras foram convertidas em dogmas indiscutíveis. Tornou- -se crime a prática de qualquer efetiva religião, salvo quanto a pequeninas exceções toleradas e manipuladas pelo regime, para efeito de propaganda externa.
Até mesmo os Estados Unidos permitem a existência de um bando de fanáticos, a “Ku Klux Klan”, que desde 1865 vem agredindo as pessoas que não apresentem estas três qualidades: cor branca, origem saxã e religião protestante. Na década de 1950 vicejou também nesse país o movimento do “Macartismo”, criado pelo senador Joseph McCarthy. Foi verdadeira cruzada, de conteúdo quase religioso, que cometeu tremendos excessos de patrulhamento ideológico, perseguindo e punindo pessoas suspeitas de tendências políticas esquerdistas.
Para tentar por cobro a desatinos como os acima descritos, a Organização das Nações Unidas patrocinou, em 1948, uma Convenção destinada a prevenir e reprimir o chamado crime de genocídio, no qual foram incluídas as agressões a um povo por motivo religioso. A figura do genocídio, de difícil aplicação prática, possui ao menos um valor ético, de advertência, que se espera seja educativo[2].
- 2. Dois povos, por inteiro diferentes, os judeus e os ciganos, se unem neste ponto comum: foram sempre implacavelmente perseguidos em quase toda parte onde estiveram.
Enquanto os primeiros eram reconhecidamente operosos, sérios e muito concorreram para a cultura e o progresso, os gitanos, ao inverso, constituíram um povo de vocação nômade, improdutivo, que pouco de útil e construtivo parece ter feito.
Sua origem é obscura. Alguma catástrofe histórica o fez perder sua terra, na Ásia, lançando-o em direção ao Oeste. Há notícias da presença de ciganos na Europa desde o século XII, mas eles se espalharam mesmo pelo continente no século XV. Na península ibérica, consta que ingressaram em 1443.
De vida errante e religião misteriosa, essa gente se cercou de uma aura de romantismo, com seus trajes coloridos, sua música, suas danças. A par disso, todavia, o cigano manteve permanente conduta anti e associai, dedicado a furtos, à leitura da sorte, a constantes trapaças e fraudes. Jamais se fixou em qualquer trabalho honesto e produtivo. Em consequência, temido por todos e reconhecido como parasita incorrigível, as mais severas punições lhe foram reservadas, visando à sua expulsão ou ao seu extermínio. Os tribunais inquisitoriais não se interessaram pelos ciganos, que se mantinham fechados em suas crenças sem nenhuma preocupação de proselitismo, mas dele se ocupou apenas a Justiça Criminal comum[3].
A sina do povo judeu, por ser muito especial e importante, merece um capítulo separado. Como há, de sua parte, muitas queixas contra a Igreja e a Inquisição, será útil conhecer-lhes a singularíssima história.
[1] Desde o ano de 64 até 192, escreve Daniel-Rops, a perseguição “será mais ou menos espontânea, mais ou menõs retardada ou acelerada pelos poderes imperiais, mas sempre esporádica e sem apresentar nunca um aspecto sistemático. A partir do século III, estabelecer-se-á um novo regime, o da perseguição por éditos especiais emanados do próprio governo e aplicáveis a todo o conjunto do Império. Os resultados do segundo método serâo incontestavelmente bem mais sangrentos que os do primeiro” (L’Église des Apôtres, etc., cit., pág. 188).
[2] Consoante o texto aprovado em 1948 pela ONU, constitui genocfdio “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesâo grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasio- nar-lhe a destruição fisica, total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.
[3] Radbruch e Gwinner (op. cil., págs. 202-3) descrevem as severíssimas sanções cominadas aos ciganos na Alemanha: se desobedecessem à ordem de expulsão, teriam seus bens confiscados e os que fossem capturados, “sem nenhuma formalidade de processo, mas tão-só pela sua «vida viciosa», deveriam ser condenados a morrer na roda”.-Na Espanha, o rei Carlos II ordenou que, “se forem apreendidos juntos em quadrilha alguns dos que se dizem ciganos, com o número de três ou mais, com armas de fogo curtas ou largas {…], ainda que nâo se lhes prove outro delito, incorram na pena de morte”. Em Portugal, o Titulo LX1X, Livro V, das Ordenações Filipinas, determinou sua expulsão do reino; e, nele “entrando, sejam presos e açoutados com baraço e pregão”. Aqueles que com ciganos andarem, acrescentou, serâo “além das sobreditas penas degradados dous anos para África”.
Extraído do livro “A Inquisição em seu mundo”, de João Bernardino Gonzaga