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Encarnação: a base da dignidade humana

4759233528_1090871ca7Os intelectuais islâmicos eram tão competentes quanto os europeus. Eles tinham os clássicos gregos e a ideia judaica (vinda do Antigo Testamento) da Criação. Alguns eruditos muçulmanos também questionaram a astrologia. Por que esses eruditos não fizeram da noção da dignidade humana um aspecto da cultura islâmica?

A resposta é que os escritores da Renascença não extraíram sua visão elevada do homem apenas do versículo da Bíblia que descreve a criação do homem. Eles encontraram a dignidade humana afirmada mais supremamente no ensino da Bíblia a respeito da encarnação de Cristo. O Novo Testamento ensina que Deus viu a miséria do homem e veio como um homem, Jesus Cristo, para fazer dos seres humanos filhos e filhas de Deus. Mas o islã nega a Deus o direito de se tornar um homem. De acordo com o islã, Deus se tornar uma criatura tão baixa como o homem seria violar sua dignidade.

Ao perguntar retoricamente “Deus pode se tornar um cão?”, os apo­logistas muçulmanos reduziram Deus ao nível dos animais. Eles seguiram os gregos ao impor limites ao que Deus pode ou não fazer. Em contraste, os nominalistas criam que Deus é livre — ele não é limitado por nossos pressupostos ou por conclusões lógicas derivadas de nossos raciocínios. Se Deus não é limitado pela lógica humana, então, para conhecer a verdade, temos de ir além da lógica para observar o que Deus realmente fez. E se Deus amou os seres humanos a ponto de vir a este mundo para salvá-los e fazer deles seus filhos amados? Um ato desses implicaria que os seres humanos são únicos na ordem criada.

Longe de violar a dignidade de Deus, a encarnação foi a prova defi­nitiva da dignidade do homem: da possibilidade da salvação humana, do homem e da mulher tornarem-se amigos e filhos de Deus. A encarnação faria dos humanos seres com valor maior que o dos anjos. De fato, a Bíblia apresenta os anjos desta forma: “Quanto aos anjos, ele diz: ‘Ele faz dos seus anjos ventos, e dos seus servos, clarões reluzentes’. […] os anjos não são, todos eles, espíritos ministradores enviados para servir aqueles que hão de herdar a salvação?”.

Sua falha em apreciar o valor e a dignidade dos seres humanos impediu a civilização islâmica de desenvolver o potencial pleno de seu povo. Essa falha prendeu as massas em uma armadilha sem os direitos e liberdades funda­mentais que tornaram possível ao Ocidente sobrepujar a civilização islâmica.

O poeta Petrarca usou a encarnação como argumento central no de­senvolvimento do humanismo renascentista. Ele baseou seu argumento na Bíblia e focalizou sua crítica a Aristóteles e ao advogado islâmico po­pular deste, Averróis ou Ibn Ruchd (1126-1198). Trinkaus escreveu que, conforme Petrarca,

O conhecimento do homem a seu próprio respeito conduz apenas a um conhecimento de sua miséria, e daí ao desespero, pois o homem está tão distante de Deus quanto os céus da terra. Então, como é superado o abismo entre Deus e o homem? Apenas pela Encarnação, que é a chave do pensa­mento religioso de Petrarca e do pensamento religioso humanista em geral.

Com exceção de Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), todos os antigos escritores gregos e romanos insistiram na distância absoluta da divindade, deixando o 3: nem em sua miséria, sem solução. Sêneca era o único a crer que “Deus irá aos homens; nenhuma mente é boa sem Deus”. Enquanto Petrarca insistia na distância infinita entre o homem e Deus, ele ao mesmo tempo se regozijou fora essa distância fora superada pelo mistério da graça divina. Essa graça trouxe Deus para perto do homem e capacitou este a se levantar de sua miséria.

A descida de Deus é a elevação do homem. Miséria, falta de recur­sos, dependência e um eterno auto conflito são normais para os homens. Tudo isso pode ser resolvido porque o transcendente também pode ser imanente — “Emanuel”, isto é, Deus conosco. Aquele que enxugará toda lágrima e removerá a maldição do pecado, inclusive a morte. Trinkaus concluiu que a encarnação de Cristo “é uma das bases teológicas do várias ve­zes repetido tema dos humanistas da dignidade e excelência do homem”.  Essa compreensão que reverteu a ênfase tradicional na condição baixa do homem. Quanto a isso, Petrarca assim se expressou:

Certamente nosso Deus veio a nós para que pudéssemos ir a Ele, e nosso Deus interagiu com a humanidade quando viveu entre nós “em aparência de homem”. […] Que sacramento indescritível! A que ponto alto a humanidade foi elevada, ao ponto de um ser humano, que consiste em uma alma racional e carne humana, um ser humano, sujeito a acidentes mortais, perigos e ne­cessidades, em resumo, um verdadeiro e perfeito homem, explicavelmente assumido em uma pessoa com a Palavra, o Filho de Deus, consubstanciai com o Pai e coeterno com Ele. A que finalidade exaltada foi a humanida­de elevada, a ponto de esse homem perfeito assumir duas naturezas em Si mesmo em uma união extraordinária de elementos totalmente diferentes.

Evidentemente, os escritores renascentistas citaram os escritores clás­sicos (mais os romanos que os gregos) para ornamentar seus tratados sobre o homem. Mas eles jamais poderiam extrair sua visão elevada do homem da cosmovisão greco-romana, como de fato não o fizeram. Foi a visão bíbli­ca do homem que se tornou a visão predominante no Ocidente.

Foi a visão bíblica que motivou Ruth a tentar salvar Sheela. Nossos vizinhos não entenderam o impulso compassivo da minha esposa, porque depois de 3.000 anos de hinduísmo, 2.600 anos de budismo, 1.000 anos de islamismo e 100 anos de secularização, fracassaram em dar-lhes uma base convincente para reconhecer e afirmar o valor único do ser humano.

Referências:

Trinkaus, In Our Image and Likeness, p. 37.

Petrarca, Francesco. On Religious Leisure [De otio religioso, c. 1357). Ed. e trad.

Susan S. Schearer. New York: Italica Press, 2002. p. 60-61.

Fonte: O livro que fez o seu mundo, de Vishal Mangalwadi (Editora Vida Acadêmica)

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