Um amigo, leitor do Tubo, me mandou as seguintes fotos. São do livro de História que uma de suas filhas vai usar ao longo de todo o ensino médio. Talvez as letras fiquem miudinhas na largura do blog, mas, se eu fiz tudo certo, basta vocês clicarem nas fotos que elas abrem num tamanho maior.
Caso ainda esteja complicado ler, ou caso não seja possível ver a imagem no tamanho original, copio aqui os trechos que nos dizem respeito:
Na primeira foto: Os estudos médicos e as descobertas biológicas da época moderna eram vistos com desconfiança pela Igreja. Muitos temiam as perseguições inquisitoriais por se dedicarem ao estudo científico. Um exemplo desse receio encontra-se na dissecação de cadáveres, que acabou se tornando comum no estudo da Medicina, mas naquela época era condenada. Leonardo da Vinci, grande artista e sábio do Renascimento, era um dos que praticava a dissecação de cadáveres em seus estudos de anatomia.
Na segunda foto: A liberdade maior das escolas de Medicina em relação à religião decorreu, em boa parte, da decisão do papa Honório III, que proibiu os clérigos de exercê-la. Diversos médicos passaram a dissecar cadáveres para entender o funcionamento do corpo humano, prática totalmente condenada por diversas religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo). Alguns médicos, como Andreas Vesalius, do século XVI, chegaram a roubar cadáveres para seus estudos.
O livro é História — Volume único, de Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos.
E é tudo mentira. Há três anos eu já tinha publicado um post no Tubo sobre a lenda da proibição da dissecação de cadáveres. Repito aqui o que escreveu Katharine Park, professora de História da Ciência da Universidade de Harvard, no livro Galileo goes to jail and other myths about science and religion: A maioria das autoridades religiosas medievais não apenas tolerava, mas incentivava a abertura e desmembramento de corpos humanos para fins religiosos: corpos de santos eram eviscerados e embalsamados; eram divididos para produzir relíquias; os órgãos internos de homens e mulheres santos eram examinados em busca de sinais de santidade (…) tudo isso derruba a alegação de que a Igreja, como instituição, era comprometida com a integridade do corpo humano após a morte. Vejam lá no post outras informações relevantes sobre esse tema.
E mesmo a proibição de que clérigos exercessem a medicina não era absoluta, como diz a Enciclopédia Católica. A decisão de Honório III, por exemplo, citada no livro, não se aplicava a todos os clérigos, mas aos que tinham algum tipo de dignidade eclesiástica, como cônegos. Em caso de emergência, ou para atender os pobres em locais sem médicos, por exemplo, a restrição era levantada.
Agora, como é que uma lorota dessa, anos depois de ter sido desmascarada, continua aparecendo em livros didáticos? As hipóteses são várias. Não descarto a desinformação pura e simples. Já comentei muitas vezes aqui no blog que muito do que é produzido na academia sobre a história da relação entre ciência e fé não faz o salto para a opinião pública. Mas, convenhamos, é obrigatório para quem elabora livros didáticos estar atualizado em relação ao que se conhece sobre o tema abordado. Os autores deviam saber que a Igreja nunca condenou a dissecação. Também pode haver ideologização. Autores e professores de esquerda (e são muitos, e bem espalhados por aí) costumam retratar da pior maneira possível certos países, pessoas e instituições, e a Igreja Católica é uma delas. Ou pode haver um preconceito antirreligioso em geral, que se reflete no modo como a relação entre ciência e fé é demonstrada. Nesses dois casos, não costuma haver muito compromisso com a verdade.
Só espero que a filha do meu amigo saiba contestar essa mentirada toda na hora da aula.
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/tubo-de-ensaio/como-e-dificil-matar-uma-lenda/