Autor: Robson Fernando de Souza
Indignados com os abusos que as religiões organizadas cometeram e cometem ao longo dos últimos milênios, assim como com a tentativa de vertentes fundamentalistas de cercear seus direitos por não compartilharem da mesma fé, muitos ateus tomam um caminho de militância antirreligiosa, acreditando que um mundo sem religiões, quaisquer que sejam, será um mundo inexoravelmente melhor. Passam então a abrir debates na internet e/ou divulgar imagens de “conscientização” antirreligiosa ou antiteísta, na fé de que a internet forme muito mais ateus e reduza à impotência o poder e a quantidade de fiéis das religiões cristã e islâmica.
A partir de certo ponto de vista, esse movimento é uma reação legítima aos abusos referidos dos fundamentalistas religiosos, que ora tentam impedir os direitos das minorias que não se curvam aos seus dogmas, ora submetem milhões de pessoas socioeconômica e psicologicamente fragilizadas aos ditames de igrejas que visam muito mais a arrecadação de dinheiro e a propagação de uma doutrina capitalista e materialista do que a edificação espiritual dos indivíduos e a comunhão destes com sua divindade, ora propagam ódio puro contra minorias como LGBTs, ateus, afrorreligiosos e pagãos.
Porém, às vezes a “panfletagem” antirreligiosa acaba criando imagens dotadas de um efeito indesejado que, mais do que desacreditar as religiões organizadas perante a sociedade, torna os ateus ainda mais alvos de preconceito. Se hoje nós ateus ainda somos vistos por muitos como infelizes, amorais e “filhos do diabo”, determinadas imagens correm o risco de passar um outro estereótipo negativo nosso: o de pessoas ignorantes e preconceituosas que acreditam (e arrogam) saber de tudo mas nada sabem e odeiam as religiões independente delas quais sejam.
Para evitar essa nova estereotipação, esta série de posts que crio, intitulada Desmentindo imagens antirreligiosas preconceituosas e adaptada da série de mesmo nome que foi publicada no Consciencia.blog.br, visa fazer uma crítica às imagens de cunho antirreligioso mais inverídicas e absurdas que foram encontradas na internet. Isso tanto pode evitar que os ateus passem a ganhar o mencionado novo “motivo” para serem preconceituados como deve sugerir aos militantes antiteístas que não sejam mais tão imprudentes ao fazerem e divulgarem imagens-panfleto que critiquem as religiões em geral.
Esta série também recomendará enfaticamente, ao longo de seus posts, que aqueles que se engajam na divulgação do desprestígio às religiões adquiram conhecimento sobre disciplinas importantes, tais como Sociologia, Antropologia, História da Ciência, História das Religiões, Ciência das Religiões e Filosofia, antes de correrem o risco de entrar em contradição frontal com elas e propagar desinformação e falácias.
Abaixo, está a crítica às duas primeiras imagens. Cada post irá criticar duas imagens encontradas em fanpagens ateístas do Facebook – à exceção de um post, que criticará um vídeo que mostra várias imagens dicotomizando “religião” e ateísmo.
Imagem dicotomiza o “mundo sem religião” contra o “mundo com religião”
A imagem em questão apela para uma falsa dicotomia maniqueísta, em que um mundo sem religiões seria obrigatoriamente um paraíso, o reduto do Bem, e um mundo com religiões seria necessariamente “um mundo cheio de ódio”, guerras, matanças etc., o reduto do Mal.
É de se perceber que muitas, senão todas, as imagens antirreligiosas, a exemplo da figura acima, consideram como a “religião padrão” o trio abraãmico (cristianismo, islamismo e judaísmo), religiões que de fato acabaram servindo – e até hoje servem – de estandartes para muitos crimes contra a humanidade. A figura em questão, aliás, possivelmente incluía em sua concepção o hinduísmo – enquanto instituidor de castas – e religiões pagãs antigas que veneravam deuses da guerra e demandavam sacrifícios humanos. Mas acontece que, na abordagem acima, todas as religiões, mesmo se tendo tentado fazer uma ressalva, acabam caindo no mesmo saco das “religiões violentas”, incluindo religiões de caminho (budismo, taoísmo, hinduísmo, xintoísmo etc.), crenças religiosas sincréticas que têm a paz e o respeito às diferenças como dois dos seus pilares éticos centrais e as vertentes pacifistas do cristianismo e do islamismo.
Deve-se esclarecer: um mundo sem religiões não é igual a um mundo pacífico e harmonioso. Irreligião não é um atestado de santidade humana. Uma humanidade que tenha despojado de si todas as religiões existentes (organizadas ou não) ainda teria muito o que sanar para se tornar uma humanidade pacífica e equilibrada. Nada impediria que ideologias seculares violentas continuassem existindo, a exemplo do socialismo histórico do século 20 e de versões seculares do nacionalismo de extrema-direita.
Além disso, um mundo sem religiões não implicaria um mundo sem preconceitos. Continuaria existindo etnocentrismo, especismo, machismo, gerontofobia, gordofobia, homofobia (ainda que em escala muito menor, mas dessa vez associada mais ao machismo do que aos antigos valores religiosos), racismo, preconceitos regionais, xenofobia etc. O fim das religiões não implicaria o fim das tradições socioculturais escoriosas que durante séculos ou milênios tornaram as sociedades humanas tão apegadas a preconceitos. Uma evidência muito forte disso é a existência hoje de uma parcela nada desprezível de ateus machistas-misóginos, homofóbicos e mesmo racistas e xenófobos.
E também não se acabariam os interesses econômicos escusos por partes de pessoas muito ricas, empresas e Estados, interesses esses que costumam legitimar guerras e sistemas opressivos (como o próprio capitalismo em si).
Além do mais, a ilustração de guerra na figura não condiz com os fatos: nenhuma das duas figuras de guerras remete a conflitos motivados por intolerância religiosa. Com destaque à famosa figura da menina queimada na Guerra do Vietnã, conflito esse que envolveu tudo menos provavelmente diferenças religiosas. Vê-se assim um desconexo apelo à emoção e a indução ao erro, pelo qual todas as guerras, mesmo aquelas motivadas por interesses geopolíticos e econômicos, seriam fundamentadas por “religiões violentas”.
Por outro lado, a religião, em sua definição de (re)ligar pessoas a(os) Deus(es) e/ou orientá-las a caminhos de retidão ético-moral, nunca foi intrinsecamente significado de obscurantismo, dominação rebanhista por parte de sacerdotes, sectarismo, dogmatismo e beligerância. Há religiões pacifistas e tolerantes por excelência, o que inclui diversas religiões orientais (como o budismo), (neo)pagãs, indígenas e sincréticas. Muitas religiões, como as dhármicas, podem ser seguidas simplesmente trilhando-se um caminho de retidão ético-moral descrito pela sabedoria espiritual-filosófica trazida por suas obras literárias, sem que seja necessário cultuar divindades contraditórias, ter medo de punições pós-morte e se submeter ao controle psicológico por parte de clérigos. E mesmo religiões organizadas, como o cristianismo, têm caminhos/vertentes alternativos que permitem o livre uso da Razão – mesmo para duvidar da existência de Deus -, o respeito a todas as diferenças e a insubmissão ideológica.
Por fim, a ressalva feita na base da imagem, além de mal escrita, contradiz o argumento-base do panfleto. A dicotomia da imagem é claríssima, e a ressalva invalida a mensagem passada – segundo esse asterisco nos permite concluir, um mundo com certas religiões pode sim ser um mundo de paz e respeito, e “mundo sem religiões” não é igual a “mundo com algumas religiões”, logo a figura é falseada por seu próprio rodapé.
Esse tipo de dicotomia maniqueísta que conflita o “ateísmo santo do bem” contra a “religião belicista e odienta do mal” corre o risco de se passar por desonestidade intelectual, acaba jogando a categoria inteira de ateus e demais irreligiosos contra a dos religiosos e também semeia no meio ateísta o preconceito contra religiões e religiosos. E isso está muito longe de trazer paz ao mundo – tudo o que trará é ainda mais sectarismo e intolerância mútua.
Imagem cria um falso “buraco científico que é culpa do cristianismo” na Idade Média
A figura em questão comete muitos equívocos:
a) É profundamente eurocêntrica;
b) Deixa a entender que apenas uma civilização poderia desenvolver tecnologicamente a humanidade inteira por vez;
c) O critério de “avanço científico” usado na imagem é totalmente obscuro, tendente à mera subjetividade anticristã do seu criador;
d) Induz-se ao erro ao deixar parecer que o conceito e método de ciência teriam sido os mesmos ao longo de toda a história humana, mesmo variando-se as civilizações e épocas. Em outras palavras, deixou-se a entender que a Ciência dos egípcios antigos e dos romanos veneradores de Júpiter, Vênus e cia. teria sido conceitual e metodologicamente a mesma dos pesquisadores do CERN e da NASA;
e) Não fica claro se no “avanço científico” também se incluem os avanços tecnológicos;
f) Dá a ideia de que houve exatamente um contínuo linear e uniforme entre os avanços egípcios, gregos e romanos, como se harmonicamente, por exemplo, os gregos continuassem onde os egípcios haviam parado e houvesse assimilação completa da ciência egípcia pelos gregos e da grega pelos romanos;
g) Deixa a entender que, por exemplo, os egípcios pararam de desenvolver sua ciência quando os gregos começaram a fazer o mesmo, não existindo ciência e tecnologia paralelas;
h) Ignora por completo os avanços científico-tecnológicos de todas as demais civilizações – árabes, chineses, mesoamericanos, andinos, tupis, povos mesopotâmicos, persas, indianos, povos da Oceania…
i) Induz ao erro segundo o qual a cristianização do Império Romano teria destruído tudo o que havia avançado em termos de ciência naquela civilização e na grega – o que, se considerarmos fatos como a proteção de grande parte do conhecimento europeu antigo pelos árabes medievais, fica provado como errado;
j) O ponto principal: ignora que existiram sim muitos avanços científicos durante a Idade Média, inclusive na Europa. Alimenta-se o secular e cada vez mais desprestigiado preconceito contra o progresso da ciência na época;
k) Afirma falaciosamente que a dominação católica da Europa teria estagnado por completo a ciência no continente, ignorando-se que, por exemplo, muitos religiosos foram fundamentais na ciência medieval;
l) Ignora os enormes avanços tecnológicos também da Idade Média e o fato de que justamente a construção de igrejas, junto à de castelos, capitaneou a engenharia civil da época;
m) Traz um conceito obscuro de “ciência moderna”, que teria surgido exatamente em 1800, descartando-se o conceito atualmente aceito de ciência moderna, baseado no método científico que se conhece hoje, o qual havia surgido por nomes como Galileu, Francis Bacon e Descartes;
n) Induz ao erro de que, se o cristianismo não tivesse se tornado religião de Estado de Roma, 1000 E.C. teria a mesma ciência e tecnologia que de fato havia no ano 2000, sem que absolutamente nada na literatura histórica comprove isso. Em outras palavras, afirma, sem qualquer comprovação, que haveria carros, computadores, espaçonaves, robôs, máquinas diversas, equipamentos eletrônicos etc. no ano 1000, se uma religião específica não tivesse vindo à existência;
o) Ignora todo e qualquer contexto social, econômico e político envolvido nos avanços científicos e tecnológicos – como a influência do capitalismo industrial nas invenções dos dois últimos séculos e o impulso político dado aos avanços na ciência e tecnologia espacial no século 20 nos EUA e na União Soviética -, assim como a interferência de épocas de crise, guerra e instabilidade política no desenvolvimento tecno-científico de cada civilização;
p) Da mesma forma, desvincula indevidamente a Ciência e a Tecnologia dos contextos filosóficos e religiosos em que ela esteve presente. Ignora que, por exemplo, as religiões pagãs da Antiguidade e da primeira metade da Idade Média tinham cosmovisões da Natureza muito diferentes da cosmovisão antropocêntrica, dicotômica – que separa rigidamente o humano/cultural do natural/silvestre – e objetificadora da Natureza que a Ciência Moderna desenvolveu desde a época de René Descartes e Francis Bacon. Essa questão é decisiva para a manutenção dos paradigmas científico-tecnológicos vigentes, mas isso a imagem não levou em consideração. Em outras palavras, uma humanidade que permanecesse pagã até hoje não veria na Ciência e Tecnologia o mesmo valor sagrado que nós da civilização ocidental-globalizada vemos, e Descartes, Bacon, Galileu e outros não teriam feito o que fizeram – ou seja, seria totalmente impossível haver a tal “subida exponencial” da ciência a partir de Roma ou da Europa medieval numa realidade sem o surgimento do cristianismo.
Pode haver, aliás, ainda mais erros na imagem que me escapam à observação neste momento.
A imagem tenta denunciar os abusos da Igreja Católica, mas usa uma falácia do espantalho de que a instituição teria interrompido por completo e mesmo desfeito todo o conhecimento científico adquirido desde o Egito Antigo até a Roma clássica. E não é assim que se conseguirá tornar o mundo menos religioso – isso só fará, no máximo, que os ateus se passem por historicamente ignorantes e também por maus argumentadores. Isso não fará o mundo se tornar mais ateu e justo (ou mais “ateu, logo justo”).
Pelo contrário, ameaça fomentar entre os descrentes um fundamentalismo muito semelhante ao de muitos religiosos e criar uma espiral de preconceito, intolerância e hostilidade entre religiosos e irreligiosos. Algo muito distinto do mundo de paz que os ateus, sejam eles antirreligiosos ou respeitadores das religiões, desejam.