Sinceramente, eu já achava Gravidade um filme genial. Depois que assisti os extras do Blu-ray e pude perceber a profundidade da sub-trama, bem como as metáforas sutis e poderosas de cada elemento que aparece no filme, deixei de achar o filme genial… Passei a considera-lo uma obra-de-arte sem paralelos, tanto a nível de avanço tecnológico quanto de qualidade e profundidade de roteiro. Poesia, filosofia, metáfora, metafísica e até mesmo teologia foram convertidas com maestria em imagens poderosas e com uma sutileza e sensibilidade digna dos grandes gênios do cinema.
Gravidade é uma história sobre a jornada da vida humana, os desafios inerentes a sua existência e a busca intrínseca e incessante do espírito humano de transcendência e redenção referente a sua condição “miserável” em face, paradoxalmente, de uma realidade intrincada, bela e formidável. Temas universais e eternamente recorrentes que assombram a humanidade desde sempre.
Uma obra carregada de simbolismos, a começar pelo personagem interpretado por George Clooney, personagem seguro de si e que é quase um arquétipo de Jesus Cristo, guiando a personagem de Sandra Bullock não apenas para sua salvação (o que inclui o auto-sacrifício voluntário e o seu “reaparecimento” na Soyuz no intuito de incentivar a já rendida astronauta Ryan), mas para uma mudança de personalidade profunda vista na segunda metade. Já Bullock é uma representação fiel da humanidade e seus dramas, que encontra em seu processo de renascimento uma nova perspectiva de vida (diria até que seria uma espécie de redenção pós-catarse, referenciando o momento da reentrada).
No âmbito visual, as referências teológicas e filosóficas se encontram em imagens emblemáticas, como a cena em que Ryan é lançada ao espaço vazio e escuro (referência a condição humana em face da vastidão da realidade (natural e espiritual)), a da câmara de compressão a vácuo na ISS (que os roteiristas chamam carinhosamente de “Bullock no útero”, simbolizando o processo de amadurecimento do personagem), o diálogo com Aningang (o medo da morte), a chuva de detritos periódica como a representação do problemas e desafios da vida (a ignição da instabilidade e do sofrimento que a cada ciclo superado, volta pior, sempre com mais “detritos”), a saída de Stone da água (representando o primeiro passo no processo de evolução, que supostamente começou na água) e o plano final de Bullock na beira do lago representando o fim do processo de renascimento e o início de uma nova vida. Tudo isso traduzido em imagens poderosas, impossíveis de se descrever apenas em um texto. Há inúmeras outras referências, mas me parece que Alfonso Cuarón leu algumas coisas acerca de teologia cristã para fazer esse filme.
Cuarón faz tudo isso sem excluir categorias de platéias (há referências a várias religiões, em especial ao cristianismo, ao budismo e ao confucionismo), aborda tais assuntos de maneira universal (sem cair no universalismo) e consegue traduzir tudo isso de maneira magistral para imagens em um filme de 90 minutos, característica que considero o único problema, pois fica um gosto de “quero mais” ao final da projeção.
Ao se deparar com tudo isso, percebe-se que Gravidade é uma obra ímpar, revolucionária (especialmente a nível tecnológico) e que bebe de algumas das fontes mais nobres do cinema, como Stanley Kubrick, Andrei Tarkovsky e Jean-Luc Godard.
Ai você entende que a história de dois astronautas vagando pelo espaço, fugindo de uma chuva de detritos surreal e lutando pela sobrevivência da maneira mais extraordinária possível (mesmo com alguns absurdos ali e acolá) é apenas um mero detalhe e que a obra como um todo é, como diz a personagem de Bullock, “is just a hell of a ride”.