Surge, porém, espontânea, a pergunta: “Como se explica todo este desprezo de Marx para com o ‘cristianismo’?” A resposta última e radical aparecerá em seguida. No entanto, podemos
dizer que uma das causas de sua atitude se encontra na doutrina do materialismo histórico.
Fundado nele, Marx “sabe” que as únicas verdadeiras mudanças de ideias, de costumes, de relações sociais são as que nascem das mutações das relações de produção, e sabe também que essas relações mudarão na sociedade socialista, à qual o desenvolvimento da sociedade burguesa levará inevitavelmente.
Disto ele está “cientificamente” certo, pelo que as únicas coisas que ele está disposto a considerar com seriedade são orientadas a mudar a estrutura econômica da sociedade, “base real” de qualquer outra transformação. Quem não trabalha neste sentido perde tempo, ou até desvia as energias do único empreendimento com possibilidade de sucesso: a revolução socialista.
Daí a sua oposição a todos os que acreditam poder melhorar o mundo, apelando para “infantilidades absurdas sobre os deveres de solidariedade social”, e que não aceitam seu programa revolucionário, o único válido, porque fundado no conhecimento da estrutura da sociedade e do mecanismo de seu desenvolvimento.
Daí também suas ásperas polêmicas em relação aos que discordam dele, não poupando sequer os velhos amigos de juventude, como Proudhon, Bauer, Kriege e o mesmo Feuerbach. Entende-se também como as obras voltadas a diminuir os sofrimentos dos pobres e a elevar seu teor de vida aparecem como estéreis panaceias, ou até como verdadeiras traições, porque ameaçam desacelerar o processo revolucionário, pois diminuem o “sentido de rebelião” das massas. Por isso ele considera nefasta a obra de Dom Ketteler em favor dos trabalhadores e chama de “cães” aqueles padres que “se
pavoneiam com a questão operária”.
À luz do materialismo histórico, Marx está certo de que a sociedade do amanhã ignorará todo tipo de exploração e de alienação, porque nela “o livre desenvolvimento de cada qual” será “a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Perante esta, qualquer outra perspectiva empalidece. O que é, de fato, tudo o que fez o cristianismo em 1800 anos de história, perante o que o socialismo fará? Os esforços, as fadigas, os sofrimentos dos santos cristãos parecem-lhe patéticas ingenuidades, pois não operam lá onde se pode trabalhar com eficácia para a renovação do homem, ou seja, sobre as estruturas econômicas e sociais.
Aceitas certas premissas, o raciocínio mantém-se. Há somente um ponto fraco: é que a sociedade socialista dele, exatamente por ser do futuro, ainda não existe, e portanto não é “real”. Pode ao máximo ser considerada como uma hipótese. E mesmo aceitando que se trata de uma hipótese “científica”, como qualquer hipótese científica, ela não tem nenhum valor, enquanto não for verificada.
Marx, ao invés, faz dela uma certeza absoluta; a sociedade socialista do amanhã é para ele uma “realidade”; ofuscado por seu esplendor, fica cego perante todo o resto. E é bem compreensível que seja assim: no confronto entre a esperança e a realidade, entre o mundo ideal e o mundo real, é sempre o mundo real que leva a pior. Mas a hipótese da sociedade socialista, de uma sociedade livre, de homens livres, e também profundamente solidária entre si, em que cada um reencontra e realiza a si mesmo como “ser genérico”, ou seja, como membro da comunidade e não em contraste com ela; depois de quase um século e meio de sua formulação, a hipótese dessa sociedade teve porventura resposta nos fatos, ao menos em parte?
Extraído de “Por que crer em Deus”, de Desidério Piróvano