Há um velho provérbio italiano que avisa os tradutores: “Traduttori? ! Traditori”. Tradução: “Tradutores? Traidores!” O provérbio inglês Something’s always lost in the translation (sempre se perde algo na tradução), é claramente ilustrado neste caso. Em italiano as duas palavras são praticamente idênticas, tanto na grafia e pronúncia. Assim, envolvem um jogo de palavras. Mas quando traduzidas para outras línguas, o trocadilho desaparece. O sentido, em um nível, é o mesmo, mas por outro lado, é completamente diferente. Como já não é um trocadilho, a tradução não permanece na mente, tanto quanto tem o mesmo efeito em italiano. Há sempre algo perdido na tradução. É como dizer em francês, “não coma o peixe; é veneno”. A palavra ‘peixe’ em francês é poisson, enquanto que a palavra para “veneno” é poison. Há sempre algo perdido na tradução.
Mas quanto se perde? Aqui eu quero explorar mais cinco mitos sobre a tradução da Bíblia.
Mito 1: A Bíblia foi traduzida tantas vezes que não pode se descobrir o original.
Este mito envolve uma compreensão ingênua do quê os tradutores da Bíblia realmente fazem. É como se, uma vez que traduziram o texto, destruíssem seu exemplar! Às vezes as pessoas pensam que os tradutores que estavam seguindo uma tradição (como a KJV [versão King James] e seus descendentes, a RV, ASV, RSV, NASB, NKJB, NVI, e ESV) não traduziram, mas apenas transpor inglês. Ou que de alguma forma os manuscritos que os tradutores utilizaram estão agora completamente perdidos.
A realidade é que não temos quase nenhum registro de cristãos destruindo manuscritos bíblicos em toda a história da Igreja. E aqueles que foram traduzidos em uma tradição examinaram tanto o inglês (ou o português) como as línguas originais. Estudiosos decentes melhoraram no texto à medida que foram fazendo comparações em notas e manuscritos. Por fim, ainda temos quase todos os manuscritos que os tradutores anteriores usaram. E nós temos muitos, muitos mais também. O Novo Testamento da KJ, por exemplo, foi essencialmente baseado em sete manuscritos gregos, que datam de não antes do século XI. Hoje temos cerca de 5.800 manuscritos gregos do Novo Testamento, incluindo aqueles que os tradutores KJV usaram. E eles datam já do segundo século. Então, conforme o tempo passa, estamos realmente ficando mais perto dos originais, não mais longe.
Mito 2: As palavras em vermelho indicam as palavras exatas ditas por Jesus de Nazaré.
Os estudiosos há muito tempo reconheceram que os escritores do Evangelho moldaram suas narrativas, incluindo os ditos de Jesus. Uma comparação entre os sinópticos revela este fato em quase todas as páginas. Mateus cita Jesus diferente do que Marcos, o qual cita Jesus diferente de Lucas. E em João, Jesus fala significativamente diferente do Jesus dos sinóticos. Basta considerar o tema-chave do ministério de Jesus nos sinóticos: “o reino de Deus” (ou, no sentido de Mateus, muitas vezes “o reino dos céus”). No entanto, esta frase ocorre apenas duas vezes em João, sendo geralmente substituída por “vida eterna” (o termo “Reino de Deus” ocorre 53 vezes nos Evangelhos, apenas dois dos quais estão em João; o termo “Reino dos céus “ocorre 32 vezes e todos em Mateus. “A vida eterna” ocorre oito vezes nos sinópticos, e mais de duas vezes mais em João.) Os historiadores antigos estavam muito mais preocupados em obter a essência dos termos do que um orador tentando gravar as suas palavras exatas. E se Jesus ensinou, principalmente, ou mesmo ocasionalmente, em aramaico, uma vez que os Evangelhos estão em grego as palavras, por definição, não são exatas.
Faz-se uma distinção útil entre as próprias palavras de Jesus e própria voz de Jesus, conhecida por ipsissima verba e ipsissima vox, respectivamente. Raramente podemos dizer que temos as próprias palavras de Jesus, mas podemos estar muito mais confiante de que o que está registrado em letras vermelhas em traduções é pelo menos a própria voz de Jesus. Novamente, se os historiadores antigos não estavam tão preocupados em obter as palavras exatamente certas, não devemos colocá-los em uma camisa de força modernista esperando termos algo a que nunca foram destinados.
Mito 3: Os hereges corromperam severamente o texto.
Este mito é geralmente promovido pelos promotores de que somente a versão inglesa King James (ou, no Brasil, a Almeida Corrigida e Fiel) que afirmam que os manuscritos que vieram do Egito foram terrivelmente corrompidos. Uma abordagem mais sofisticada procura demonstrar isso passagem após passagem. Por exemplo, escribas ortodoxos começariam a citação de Isaías 40,3 e Malaquias 3,1 em Mark 1,2 com “Como está escrito em Isaías, o profeta“? A leitura alternativa, encontrada na maioria dos manuscritos, reza “Como está escrito: nos profetas“. Mas nos manuscritos mais antigos, a leitura mais difundida é “no profeta Isaías”. Parece que os escribas posteriores foram perturbados por essa atribuição e ‘corrigiram’ por uma expressão mais genérica, de modo a incluir Malaquias.
O que é negligenciado na abordagem que pressupõe que os manuscritos anteriores foram corrompidos e produzido por hereges é o fato de que praticamente todos os manuscritos dos Evangelhos se harmonizam. Ou seja, em passagens paralelas entre dois ou mais Evangelhos, praticamente todos os manuscritos, de vez em quando, mudam o texto em um Evangelho para que ele duplique o texto em outro. Será que os hereges fizeram isso? Ela representa sim uma visão elevada da Escritura ou, como Paulo disse em outro contexto, o zelo que não está de acordo com o conhecimento. Além disso, a grande maioria destas harmonizações são encontradas em manuscritos isolados ou em manuscritos posteriores. Isto nos diz que as tendências dos primeiros escribas era harmonizar, mas porque essas harmonizações foram feitas esporádica e isoladamente, são facilmente detectadas. E, mais tarde, escribas produziram suas cópias em grandes quantidades em uma área densamente concentrada, resultando em algo mais sistemático e harmonizado de novo, o que é facilmente detectado.
Este fato encontra uma analogia no Senhor dos Anéis, de Tolkien. Quando os hobbits encontram o estranho Passolargo, na taverna do Pônei Saltitante, ficam muito aliviados ao saber que ele está do seu lado. Ele é Aragorn, e diz que se ele tivesse sido o seu inimigo, ele poderia tê-los facilmente matado.
Houve um longo silêncio. Ao fim, Frodo falou com hesitação: “Acreditei que era amigo antes da carta chegar, ou pelo menos desejei acreditar. Você me assustou várias vezes essa noite, mas nunca da maneira que os servidores do Inimigo teriam feito, ou pelo menos assim imagino. Acho que um dos espiões dele teria – bem – uma aparência melhor e causaria uma sensação pior, se é que me entende.” A Sociedade do Anel: “Passolargo,” p. 182
Da mesma forma, as leituras dos manuscritos mais antigos, muitas vezes tem uma maneira de fazer os cristãos parecerem temerosos, e no fim parecem piores mas na verdade são melhores.
Mito 4: escribas ortodoxos corromperam severamente o texto.
Este é o oposto do mito nº 3. Ele encontra a sua afirmação mais erudita nos escritos do dr. Bart Ehrman, principalmente em A Corrupção Ortodoxa das Escrituras e O que Jesus disse, o que Jesus não disse. Outros seguiram em seu caminho, mas foram muito além do que ele mesmo afirma. Por exemplo, um livro muito popular entre os muçulmanos britânicos (A história do texto do Alcorão – da revelação a compilação: um estudo comparativo com o Antigo e o Novo Testamento, de M. M. Al-Azami) faz esta afirmação:
A Igreja Ortodoxa, sendo a seita que finalmente estabeleceu a supremacia sobre todos as outras, ficou em fervorosa oposição a várias ideias ([ou] “heresias”) que estavam em circulação. Estas incluíram o adocionismo (a noção de que Jesus não era Deus, mas um homem); docetismo (do ponto de vista oposto, que ele era Deus e não homem), e separacionismo (que os elementos divinos e humanos de Jesus Cristo eram dois seres separados). Em cada caso, esta seita, a que iria crescer para se tornar a Igreja Ortodoxa, deliberadamente corrompeu as Escrituras, de modo a refletir as suas próprias visões teológicas de Cristo, enquanto demolia as de todas as seitas rivais.
Esta é uma deturpação grosseira dos fatos. Mesmo Ehrman admitiu no apêndice O que Jesus disse que “as crenças cristãs essenciais do cristianismo não foram afetadas pelas variantes textuais na tradição manuscrita do Novo Testamento”, ao contrário do que alega esse tal de Fabio Sabino aqui. A medida, razões e natureza pelas quais os escribas ortodoxos corromperam o Novo Testamento foi muito exagerada. E o fato de que tais leituras podem ser detetadas por comparação com as leituras de outros manuscritos antigos indica que as impressões digitais do texto original ainda podem ser vistas nos manuscritos existentes.
Mito 5: A divindade de Cristo foi inventada pelo imperador Constantino.
Este mito foi fortemente promovido no Código da Vinci, de Dan Brown. Ele, por sua vez, baseou suas afirmações supostamente verdadeiras (mesmo que o livro seja um romance, ele alegou que foi baseado em fatos históricos) em Holy Blood, Holy Grail (de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln). A prova, na verdade, que a divindade de Cristo encontra-se no original do Novo Testamento é esmagadora. Um olhar sobre alguns dos papiros mais antigos mostra isso. Passagem após passagem, a divindade de Cristo brilha através das páginas do Novo Testamento, e em manuscritos que antecedem significativamente Constantino. Por exemplo, o p66, um papiro do final do segundo século, diz o que cada outro manuscrito em João 1,1 diz – “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Ele antecede o Concílio de Niceia (325 dC), o qual esses céticos dizem que foi o momento em que Constantino inventou a divindade de Cristo, em cerca de 150 anos! O p46, um papiro datado de c. 200 dC, fala claramente da divindade de Cristo em Hebreus 1,8. A lista poderia continuar e continuar. Ao todo, temos mais de cinquenta manuscritos gregos do Novo Testamento que são anteriores ao reinado de Constantino. Nenhum deles nega a divindade de Cristo.
Para ver alguns dos detalhes que expõem esses mitos, considere os seguintes livros:
Rob Bowman e Ed Komoszewski: Colocando Jesus em seu lugar: em defesa da Divindade de Cristo
Ed Komoszewski, James Sawyer, e Daniel B. Wallace: Reinventando Jesus
Daniel B. Wallace, editor: Revisitando a Corrupção do Novo Testamento.
Fonte: http://www.reclaimingthemind.org/blog/2013/03/five-myths-about-bible-translation/
Tradução: Emerson de Oliveira