Esta seção aborda apenas a possibilidade dos milagres, para abrir o caminho para a investigação histórica de sua ocorrência. Existem dois argumentos a favor da possibilidade dos milagres: um baseado em Deus, o Operador de milagres, a causa; e outro com base no mundo, o efeito. Temos de demonstrar que ambos abonam a existência dos milagres.
Primeiro, não há prova alguma contra os milagres na natureza de Deus; não há uma garantia de que Deus não operaria um milagre. Se Deus existe, Ele é onipotente; portanto, é capaz de realizar milagres. Se escolhesse livremente operar milagres, não seria uma questão que pudéssemos saber a priori, pois dependeria da liberdade de escolha dEle. Um Deus onipotente não poderia ser forçado a realizar um milagre. Portanto, não há obstáculos para os milagres no próprio Deus. Se Deus existe, os milagres são possíveis.
Em segundo lugar, não há obstáculo ou prova contra os milagres no mundo ou na natureza. Se Deus os criou, ou seja, se a natureza está aberta à possibilidade de existir ou não existir, então também está aberta à possibilidade de conter ou não conter milagres. Em outras palavras, se Deus pôde dar início ao Big-bang da criação, certamente pôde acrescentar os milagres a essa existência. Se o autor pode criar uma peça teatral, também pode alterá-la. Se a “peça” depende de Deus — seu Autor — para receber a existência, também depende dele para tudo aquilo que o Criador desejar fazer com ela.
3.1. Objeções contra os milagres
A principal tarefa do apologista com relação aos milagres é responder a todas as objeções que visam provar que eles são impossíveis. Lembremos que o contestador neste caso não é um historiador que investigou cada evento de toda a história humana, e concluiu que nenhum deles era milagroso.
Não temos de refutar a objeção no nível histórico, demonstrando que alguns eventos particulares foram milagrosos. Em vez disso, as objeções operam no nível filosófico, da possibilidade. Cada objeção tenta provar que os milagres são impossíveis (ou extremamente improváveis). Se os milagres são impossíveis, então não podem ocorrer; e se nenhum milagre realmente aconteceu, o cristianismo é falso. Isso porque todas as doutrinas básicas do cristianismo se baseiam em milagres: a encarnação de Cristo, a ressurreição, a salvação e a inspiração divina das Escrituras. Se qualquer uma das objeções fosse válida, então toda a doutrina cristã poderia ser refutada.
Primeira objeção: Os milagres violariam o princípio da uniformidade da natureza.
Resposta: O que significa a expressão uniformidade da natureza? Se quer dizer que podemos explicar tudo que acontece apenas com base no sistema de causas naturais, então a objeção cai num raciocínio cíclico. Isso é o mesmo que afirmar que os milagres violam o princípio de que os milagres nunca acontecem.
Segunda objeção: Um milagre, por definição, teria de violar alguma lei da natureza. Portanto, teria de ser um evento improvável ao nível máximo. Entretanto, seria sempre mais provável que um evento nunca realmente tivesse ocorrido como foi descrito (ou lembrado) do que realmente não ter violado as leis da natureza.
Resposta A: Um milagre não viola as leis da natureza da mesma maneira que um diretor de escola não viola o cronograma de aulas se cancelar a educação física para realizar uma assembleia especial. As violações ocorrem sempre que alguém que precisa seguir ou preservar uma ordem estabelecida fracassa ou recusa-se a fazê-lo. Por exemplo, se um professor de educação física cancelasse a aula por si próprio ou liderasse os alunos durante um período de orações espontâneas, estaria violando as normas. Entretanto, seria diferente se o diretor da escola modificasse o programa de aulas dentro dos limites de sua autoridade.
O Criador do universo tem autoridade sobre toda a criação. Seria muito estranho afirmar que a suspensão de determinada sequência regular seja uma violação, como se fosse algo do qual nos sentimos culpados ou constrangidos. Um milagre não viola nada. Quando acontece, significa simplesmente que Deus decidiu (por Sua misericórdia) modificar o “cronograma” daquele dia.
Resposta B: Por que os milagres são considerados improváveis ao nível máximo? Eles certamente são incomuns, mas como podemos saber se são prováveis ou não? Isso se dá apenas se já houvermos determinado que a probabilidade de Deus existir e de algum dia Ele realizar um milagre.
Nesse caso, dizer que os milagres são improváveis ao nível máximo não é fazer uma afirmação neutra, pois é posicionar-se contra os milagres, incluindo todos os relatos sobre milagres num arranjo no qual é mais provável que Deus não exista ou que não intervenha no sistema de causas naturais, logo o evento relatado não seria um milagre. A conclusão de que os relatos sobre milagres devem ser desacreditados é uma mera suposição, assegurada pelas palavras constantes das premissas utilizadas para descrevê-los.
Resposta C: Somos criaturas que possuem hábitos. A vida é uma sequência de eventos — e geralmente o mesmo tipo de evento. Temos a expectativa de que o dia de hoje seja basicamente idêntico ao de ontem, e sabemos que as pessoas, incluindo nós mesmos, são dadas a exageros e enganos. Portanto, naturalmente abordamos as histórias de “sinais e maravilhas” com grande suspeita.
Nossa experiência humana nos ensina que temos de resguardar- nos a maior parte do tempo. Então, quando ouvimos falar de milagres a partir de pessoas de caráter questionável ou instável, encaramos os fatos como sendo meramente incomuns, como fraudes ou como ilusões. Entretanto, quando um evento, com base em suas circunstâncias, parece ser bastante correto e a pessoa que supostamente o vivenciou possui nobreza de caráter, então o episódio parece exigir uma resposta muito mais séria da nossa parte.
A questão da adequação nunca foi suficientemente reconhecida em debates sobre milagres. Entretanto, com certeza, é um fator fundamental no modo concreto como avaliamos os eventos sobre os quais ouvimos falar ou que já testemunhamos.
Terceira objeção: Aceitar a existência dos milagres seria um abandono do método pelo qual a ciência opera.
Resposta: Isso é absurdo! Todas as ciências naturais pressupõem determinados fatos desde o início: o mundo da matéria, as causas naturais operando dentro desse mundo e uma ordem ou regularidade que torne a investigação empírica possível. Por isso, certas perguntas — como por que o mundo material existe, em vez haver o nada. O que causou o Big-bang, o início absoluto de todos os seres materiais?—não pertencem, estritamente falando, à física. Isso não significa que tais questões sejam irreais, mas apenas que a ciência como tal não pode respondê-las. Um cientista que crê que Deus trouxe o universo à existência não abandonou o método científico, mas simplesmente reconheceu seus limites.
Avaliemos o exemplo seguinte. Um médico testemunha um evento bastante incomum. Um paciente em estágio terminal de AIDS é repentinamente curado depois de aceitar Jesus e ser ungido com óleo pelos presbíteros evangélicos que visitaram o hospital. Então o médico pensa: “algo reverteu a doença, mas o que exatamente?” Então, ele busca descobrir essa causa desconhecida. Avalia todos os remédios que o paciente tomou antes e durante o tratamento. Examina uma amostra do óleo para se ver se a substância contém algum elemento desconhecido capaz de destruir o vírus da AIDS. Depois de várias semanas de trabalho infrutífero, o médico começa a perguntar-se se aquela doença terrível poderia ser revertida de maneira psicossomática. Por fim, desiste e admite que, como cientista, não pôde encontrar uma explicação empírica plausível.
Esse é um cenário possível. Entretanto, existe outro. Suponhamos que, enquanto visitava a igreja para recolher o óleo para os testes, o médico tenha se sentido bastante emocionado com a fé dos crentes que cultuavam Deus ali. Ele já ficara bastante tocado pela atitude caridosa que seu paciente — antes tão amargurado — agora demonstrava aos seus semelhantes. O médico tinha sentido o mesmo ao visitar o templo, mas com uma intensidade muito grande. Então, meditou a respeito da mensagem do evangelho e sobre o cristianismo. E embora não encontrasse nenhuma explicação plausível (empírica) para a cura, o médico tenha passado a acreditar que Deus interveio especificamente para curar seu paciente e que nenhuma descrição do evento que excluísse Deus das circunstâncias do milagre poderia ser adequada.
Se isto ocorresse, deveríamos notar que o médico não teria passado a desacreditar na explicação empírica. Ele não deixaria de ser cientista. Simplesmente reconheceria que a ciência tem limites, ao acreditar que naquele caso a verdadeira explicação transcendia seu conhecimento e suas experiências.
Quarta objeção: os milagres seriam uma afronta à glória de Deus. Se Ele desenvolveu todo 0 sistema natural e precisa ficar intervindo nas operações regulares desse sistema, mostra-se um projetista incompetente.
Resposta: Esse argumento seria verdadeiro apenas se Deus houvesse desenvolvido um sistema no qual nunca devesse intervir; se Ele nunca devesse responder orações ou revelar-se de maneira especial ou espetacular. Se comprássemos uma casa recém-construída e descobríssemos que ela não tem banheiros, isso realmente prejudicaria a reputação do arquiteto. Isso porque o projeto teria falta de algo que inquestionavelmente deveria possuir. Entretanto, se os milagres acontecem, então Deus não desenvolveu um sistema no qual nunca devesse intervir. Sua intervenção é parte do plano; Ele o desenvolveu dessa maneira.
Será que algum de nós se considera capaz de afirmar que Deus não deveria desenvolver o sistema natural dessa maneira? Não sabemos e não podemos conhecer a extensão da criação divina. Pode haver mundos em que não existam orações respondidas de maneira especial, nenhuma intervenção no sistema de causas naturais. Como podemos saber com certeza que seria errado Ele ter criado um mundo no qual não precisasse intervir?
Quinta Objeção: Como podemos saber que é 0 Deus único, e não outro deus qualquer (ou até mesmo um demônio), 0 responsável por essas intervenções notáveis na ordem natural das coisas?
Resposta: Novamente o contexto é de crucial importância. Quando consideramos, por exemplo, os feitos extraordinários atribuídos a Jesus e o relacionamento especial que Ele afirmou ter com o Pai (Deus), é difícil evitarmos qualquer uma dessas três conclusões: Jesus era louco; era uma fraude demoníaca; ou, então, realmente era o Filho de Deus — e assim, Seus feitos extraordinários foram milagres no sentido mais amplo da palavra. Essa tripla possibilidade surge não apenas se considerarmos os feitos em si; ela advém primariamente da vida, do caráter e da mensagem daquele que os realizou.
Nos capítulos seguintes, pedimos que o leitor considere cuidadosa e sinceramente o caráter de Cristo bem como do testemunho deixado a respeito dele. Com base nas evidências, tentaremos apresentar um caso a favor dos milagres da encarnação (o fato de que, em Jesus, a Palavra divina se tornou carne) e da ressurreição (o fato de que três dias depois de sua crucificação e morte, Jesus realmente voltou à vida).
Fonte: MANUAL DE DEFESA DA FÉ – APOLOGÉTICA CRISTÃ, de Peter Kreeft e Ronald K. Tacelli