Um dos mais recentes livros do badalado filósofo francês contemporâneo, Luc Ferry (Famílias, amo vocês. Ed. Objetiva). O título é atrativo e parece uma saída da mesmice do discurso desconstrucionista da Escola de Frankfurt e de toda uma cultura relativista em voga. No entanto, o contato com a obra demonstra que o autor segue uma espécie de linha esquerda “light”. Quando trata da família, passa a propor a “divinização do humano”, um humanismo levado a último grau, empreitada já indicada por muitos outros modernos e pós – modernos (Nietzsche, Heidegger entre outros). O autor pretende recuperar o “sagrado”, mas dá um sentido meramente humano e imanente a este como tudo aquilo por que se aceitaria morrer, dar a própria vida literalmente ou em termos de dedicação. Para ele a única opção que sobrou depois dos escombros do desconstrucionismo, capaz de exercer esse papel, embora de forma secular, foi a instituição da família. Esquece o autor que essa mesma instituição também vem sendo desconstruída, especialmente em países como o Brasil, infectados por um esquerdismo militante de alto impacto. Além disso, comete o mesmo erro de outros autores seculares e ateus que hoje pretendem recuperar as benesses da religião, mediante a “sacralização” na imanência. Isso obviamente não funcionou nunca e não vai funcionar (deviam se orientar pelo exemplo de Comte e sua Religião Positivista). Isso porque falta a qualquer imanência uma verdadeira transcendência mística. Não adianta fazer, como intenta Ferry, uma releitura do que seja transcendência e pretender construí-la de forma “horizontal”, entre os homens e somente no humanismo, enfim, por meio de uma “divinização do humano”. Há pontos positivos na obra, como a crítica às utopias marxistas – comunistas e a defesa da liberdade humana. Também reconhece a raiz das conquistas referentes ao humanitarismo (Direitos Humanos Fundamentais) no Cristianismo, fato muitas vezes deixado de lado ou deliberadamente ocultado e atribuído supostamente à sangrenta Revolução Francesa e ao “Iluminismo” do Século XVIII, o qual somente se apropriou e, note-se, tentou secularizar os ensinamentos cristãos. Todo mundo sabe no que deu: guilhotina para todo lado! Não obstante o autor insiste numa “nova transcendência” não “vertical”, mas “horizontal”. Uma “transcendência” na “imanência”, que se constitui na eleição de razões pelas quais se seria capaz de grandes sacrifícios, inclusive o da própria vida, afinal, como lembra Ferry, o “Sagrado” tem raiz exatamente no “sacrifício”. É aí que entra a família como única instituição que, segundo Ferry, teria sobrevivido aos ataques desconstrucionistas ao longo dos séculos. Propõe então que o amor filial, materno, paterno e entre os parentes em geral poderia ser o elemento de humanização e altruísmo capaz de alavancar um “mundo menos pior”. O próprio autor antevê as críticas quanto ao fato de que isso se constituiria numa espécie de “paroquialismo” ou, pior, de individualismo ou atomização dos laços sociais, onde a família já não seria a base da sociedade, mas um conjunto de células egoísticas. Com otimismo Ferry não crê nessa hipótese e aduz que o privado ou individual não afasta o público ou comunitário. Isso é parcialmente verdadeiro, mas a falta de uma real transcendência, não uma transcendência inventada e estranha à natureza humana certamente irá malograr o intento. Pelo menos é o que nos parece. Finalmente, é preciso salientar ainda outros pontos positivos em que o autor critica a prática da proliferação de direitos, o esquecimento das obrigações e a vitimização de pessoas e grupos, inclusive por fatos de um passado longínquo, multiplicando infinitamente os pleitos por indenizações, desculpas etc. Critica a prática tão comum para nós brasileiros, de ver governos ou organizações jogando classes contra classes, cores contra cores, raças contra raças, etnias contra etnias de forma muitas vezes artificial ou então acalentando ressentimentos que somente levam à reprodução de um ciclo de ódio e violência. Uma frase final do autor é extremamente positiva: “é preciso começar a parar como insano masoquismo que as diversas faces da desconstrução incessantemente alimentaram na segunda metade do século XX e que a extrema esquerda atual continua a incansavelmente sustentar” (p. 162). Em suma, pontos positivos existem na obra, mas seu horizonte ou referencial teórico é eivado pelo vício da crença da possibilidade da transcendência na imanência. Há sim, ao que parece, boas intenções. Mas, boas intenções nunca foram suficientes para nada.
Por: Eduardo Cabette