O que significa realmente “libertação” para a Igreja Católica?

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A Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação” afirma, até com ênfase, que a temática da libertação é fundamental no Antigo e no Novo Testamento (III, 4). Existe, pois, uma teologia da libertação perfeitamente válida, desde que “centrada no tema bíblico da libertação e da liberdade e na urgência de suas incidências práticas”. Mas o sentido dessa teologia só pode ser compreendido corretamente – continua o documento – “à luz da especificidade da mensagem da Revelação, autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja” (III, 4).
“Especificidade da mensagem da revelação” … Quer dizer: segundo o pensamento da Santa Sé, só se terá uma teologia da libertação válida, se o tema da libertação for entendido daquele modo particular específico, em que o entende a Revelação. E esta Revelação, não interpretada por qualquer um e de qualquer maneira, mas pelo Magistério da Igreja e de maneira
“autêntica”, conforme a Dei Verbum, n? 10. (A Dei Verbum é o documento do Concílio Vaticano II que trata da Revelação. Este nº 10 fala das relações entre a Revelação e o Magistério da Igreja. E diz explicitamente:

“O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida (pela tradição, trádita) foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo.”

Claro que esse Magistério não pode instrumentalizar em seu próprio favor a Palavra revelada, porque ele não é dono dela, mas seu servidor:

“Tal Magistério evidentemente não está acima da Palavra de Deus; ao contrário, serve-a, ensinando apenas o que lhe foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, piedosamente a ouve, santamente a guarda e fielmente a expõe.”

Assim, – ensina o Concílio – Escritura, Tradição e Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados que “um não tem consistência sem os outros”. Muito bem. O que é que esse Magistério pensa de “libertação”?

Conforme a revelação, ou melhor, segundo o que é específico da revelação cristã, a experiência radical (isto é, a mais profunda, a que está na raiz de toda experiência cristã de liberdade) é a experiência inaugural, primeira, de nossa libertação em Cristo. “Foi para a Iiberdade que Cristo nos libertou” – escrevia, quase eufórico, o Apóstolo Paulo aos fiéis da Galacía (Gl.5,1). liberdade gerada na Verdade e pela Verdade. Não uma verdade apenas enunciada, verbal, nocional; mas a Verdade vivificante, vivida, que se afirma no Ser, no Real de cada coisa, de cada natureza, de cada homem. “A Verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Mergulhados (batizados) nessa Verdade, que é Cristo (Jo 14, 6), nascemos outra vez (Jo 3,3-8), somos um “homem novo criado na justiça e na santidade da verdade” (Ef 4,24), criatura nova, filhos de uma nova Criação (2 Cor 5,17). É sobretudo nesse sentido que o Cristo é o nosso libertador. Insubstituível. E é sobretudo essa libertação, que ninguém mais pode alcançar para nós, nem nós mesmos, porque é pura graça, puro amor, puro dom, e a única capaz de se tomar definitiva por toda a eternidade – é sobretudo essa libertação que a Igreja veio pregar, dando continuação ao Evangelho, o grande anúncio de Jesus Cristo.

Diminuir a importância disso, secundarizar isso, colocá-lo num penúltimo lugar nas prioridades da Igreja, é subverter a ordem evangélica. Quando, de repente, se começa a prioritarizar o social, o econômico, o político, o temporal, o simplesmente humano, e a chamar a essas preocupações sobrenaturais de “idealismo” (no sentido que Marx atribuía à filosofia alemã de seu tempo, considerando-as como uma fuga do mundo da realidade, da história, do que importa, para o mundo das ideias, mundo irreal, ilusório, alienante), então estarmos abandonando o específico, o fundamental cristão, em nome do materialismo histórico; ao menos de “um” materialismo histórico.
É certo que os teólogos da libertação não negam a primazia, digamos, ontológica (na ordem do ser), a essa libertação especificamente cristã. Negam-na, porém, na ordem da práxis histórica. Aqui e agora, nesta América Latina, neste vulcão de insânias, miséria, opressões – o que é o prioritário, em termos de cronograma, é a libertação socioeconômica e política, pensam eles. E esse interesse é tão dominante que empurra o resto para a recessividade. Ora, será que essa prioridade social se sustenta à luz da fé? Qual a escravidão mais importante, a de que importa  libertar os homens com maior urgência?  A Instrução afirma que “a mais radical das escravidões é a escravidão do pecado”. “As demais formas de escravidão encontram, pois, na escravidão do pecado, a sua raiz mais pro-  funda” (IV, 2).  Se há uma falha nessa Teologia da Libertação que se faz na América Latina (na que preocupa o Magistério da Igreja) é que há, no conceito de libertação, uma inversão prática de valores. Para justificar isso, os “novos” teólogos recorrem amplamente ao Livro do Êxodo. E interpretam-no como uma intervenção de Deus na história do Povo para sua libertação sociopolítica: libertação da opressão. Ora, diz a Instrução, “é preciso não perder de vista que a significação especifica desse acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai” (grifo nosso). Por isso, continua o documento, “a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja às vezes substituído na. Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção”. (IV, 3.)
A Instrução procura clarificar o sentido do Êxodo pelo de outras libertações bíblicas do Povo de Deus, de que falam os profetas Jeremias e Ezequiel. O episódio narrado ali é, até o fim da história do Povo de Deus, o arquétipo de todas as libertações históricas de Israel. Ora, fica muito claro, tanto em Jeremias quanto em Ezequiel, que – muito além da libertação política – Deus queria era estabelecer, com seu povo, uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e pela conversão dos corações (cf. Jr 31,31-34; Ez 36,26s.). É ainda nesse mesmo sentido que teremos de ler os anseios de libertação tantas vezes encontrados nos Salmos: aí, “a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política”. “Os Salmos, insiste o documento, nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem,  tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os “pobres do Senhor” vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus.” (IV, 4 e 5.)
Isto não quer significar – de maneira nenhuma – uma fácil espiritualização da libertação, que nos dispensaria das lutas pela justiça social. “Já no Antigo Testamento, os profetas, desde Amós, não cessam de recordar, vigorosamente, as exigências da justiça e da solidariedade, e de formular um juízo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa  da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos. ( … ) Não se concebe a fidelidade à Aliança, sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis.” (IV, 6.)

Neste ponto, a Instrução se aplica a mostrar como o Novo Testamento só fez aprofundar o sentido de libertação. “Na figura do pobre somos levados a reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa do Filho de Deus, que se fez pobre por nosso amor. Este é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre o Juízo, em Mt 25,31-46.” (IV,9). Assim, “as exigências de justiça e misericórdia, já enunciadas no A.T., adquirem uma significação nova no Novo Testamento. Os que sofrem, os que são perseguidos, estes são, de algum modo, o Cristo (Cf. Mt 25, 31-46; At 9, 4-5; CI 1,24). São Paulo mostra, de maneira concreta, à comunidade de Corinto, onde os ricos não estavam sabendo repartir com os pobres sua abundância, que não era possível “partir o pão” de Cristo, se não se quisesse “repartir o pão comum” com o irmão necessitado. (Cf. I Cor 11, 17-34.) Afastar-se do irmão ou não comungar o irmão era afastar-se de Cristo. Não tinha, pois, sentido para eles comungar o pão de Cristo. (É bom notar que, do mesmo modo, não havia sentido comungar o Cristo, se se estivesse afastado de Cristo por qualquer outro pecado. Cf. I Cor 11,27-30.)
Assim, a Revelação do N.T. nos ensina que “a primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado” (IV, 12). E “se o N.T. se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é, sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente”. Contudo, chama a atenção o documento, “a Carta de Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pelo graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social”. (IV, 13.)

Fonte: A teologia da libertação, de Paschoal Rangel

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