Crítica do livro “A morte da fé”, de Sam Harris

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A religião faz mal, muito mal à você.

Os ataques terroristas de 11 de Setembro ressuscitaram entre os intelectuais americanos a teoria de que a fé religiosa torna as pessoas violentas. Essa hipótese vem desde a antiguidade; O filósofo romano Lucrécio, comentando os horrores da Guerra de Tróia, declarou que tantum religio potuit suadere malorum, “quantas ações malignas pode a religião fomentar.” Essa visão obviamente tira sua força do número de crentes que tem assassinado pessoas ( e matado a si mesmos) supostamente em nome de Deus. Talvez algum dia a Psicologia Social irá esclarecer um pouco mais o relacionamento entre religião e violência. Talvez. Mas Sam Harris não quer esperar ate lá. Para ele é óbvio que a Religião faz as pessoas matarem, e ele quer que ela desapareça.

A tese deste livro amplamente divulgado é a de que, para nos salvarmos da destruição eminente nós precisamos tomar todas as medidas possíveis para abolir a religião. “ Palavras como Deus e Alá devem ter o mesmo destino de Apolo e Baal, ou elas irão desfazer nosso mundo.” Dois pontos por  ousadia, se nada mais.

O argumento de Harris para a abolição da religião segue mais ou menos assim: as pessoas agem baseadas no que elas acreditam, e as crenças religiosas são especialmente  capazes de fazer as pessoas agirem violentamente; portanto, já que a prevenção da violência é uma prerrogativa ética  imperativa, a religião deveria ser extinta. O problema é que nenhuma de suas premissas é muito plausível na superfície, e o que ele afirma para embasá-las  as torna ainda menos plausíveis.

Em primeiro lugar, a alegação de Harris se baseia na idéia de que as ações das pessoas são determinadas pelo que elas acreditam a respeito do mundo a sua volta.”  Uma crença  é uma alavanca  que, ao ser apertada, movimenta praticamente tudo na vida da pessoa. Suas crenças determinam sua visão de mundo, elas ditam seu comportamento.” Até certo ponto isto é verdade. Eu não ponho minha mão no fogo porque acredito que ele irá me queimar. Mas por séculos os psicólogos questionam se as crenças sozinhas podem realmente motivar as ações. Paixões parecem ser necessárias também, e Harris tem pouco a dizer a respeito delas.

Afinal, não é somente minha crença de que o fogo irá me queimar que me motiva, mas o meu desejo de não ser queimado. Uma crença desacompanhada de um desejo parece incapaz de causar qualquer ação. Mesmo que Harris esteja certo à respeito de que pessoas violentas  tendam a ter crenças (religiosas ou de outra natureza) que desculpe a violência, será que eles são violentos porque tem essas crenças ou  será que eles tem essas crenças porque suas paixões os inclinam para a violência? Seus argumentos se baseiam na primeira opção, mas isto parece uma explicação muito ingênua da psicologia humana.

A segunda premissa de Harris , de que as premissas religiosas são especialmente capazes de tornar as pessoas violentas, é ainda menos promissora. Aqui pelo menos ele percebe que precisa discutir isto com mais detalhes. Isso porque, se as pessoas agem baseadas no que elas acreditam, como ele poderia dizer que acreditar no Sermão da Montanha, por exemplo, ou nos ensinamentos de Buda, possivelmente levará o crente a ferir outras pessoas? De fato, se o determinismo psicológico que baseia a primeira premissa de Harris é verdadeiro, então o avanço de religiões que pregam a não-violência seria algo bom para a paz mundial.

Confrontado com essa contradição óbvia, Harris faz uma manobra retórica de dois passos. Seu primeiro movimento é dizer que, mesmo dentro do coração da mais pacífica religião existe uma semente de ódio e de violência.  “Intolerância é portanto intrínseca à qualquer crença…” Certeza sobre a próxima vida é incompatível com tolerância nesta vida.”  Para perceber a obtusidade desta visão você pode checar, por exemplo, a carta de John Locke sobre tolerância de 1689. Locke usa argumentos religiosos ( neste caso cristãos) para a visão de que indivíduos e governos deveriam deixar uns aos outros em paz em questões de fé. Em outras palavras, Locke não somente advogava tolerância religiosa, ele advogava esta tolerância por razões religiosas, como fizeram William Penn e Roger Williams, e muitas outras pessoas por séculos desde então.

Harris demonstra uma crueza similar em sua discussão  sobre os religiosos  moderados.  Dado o fato, desconfortável para ele, de que a maioria dos crentes não são assassinos, ele precisa de uma razão para explicar por quê todas as religiões são más, não apenas alguns tipos de extremismo violento. Sua resposta é que os moderados tornam a vida muito fácil para os fanáticos religiosos. “O problema que a moderação religiosa nos traz é que ela não permite que nada muito crítico seja dito a respeito do literalismo religioso.” Isso não faz sentido. Você apenas precisa pensar em Erasmo, um padre e monge Augustiniano, que passou sua vida usando argumentos religiosos para combater o fanatismo religioso, para ver que os religiosos moderados podem tem coisas muito importantes a dizer sobre o extremismo.

Resumindo, a linha argumentativa pela qual ele pretende demonstrar que as crenças religiosas são inerentemente violentas não está indo a lugar algum. Então, intencionalmente ou não, Harris escorrega para uma segunda posição. Ele agora diz que as crenças religiosas são perigosas não tanto por causa do que as pessoas acreditam, mas pela forma em que acreditam.  A fé religiosa é perigosa, ele diz, porque não se conforma aos padrões de racionalidade científica, e portanto encoraja credulidade e estupidez. Ele acha isto profundamente irritante. “A fé religiosa representa um uso mal-empregado e intransigente do poder de nossas mentes que forma um tipo de singularidade cultural perversa- um ponto de escape além do qual o discurso racional se torna impossível. Religião é o “veneno da desrazão” solto no mundo, e a desrazão, ele acredita, é uma coisa perigosa.

Resumindo, sua visão segue assim: 1) Pessoas religiosas são menos racionais do que as outras pessoas; 2) Elas são menos racionais porque são religiosas; 3) Essa falta de racionalidade as torna perigosas. Da minha parte, eu não posso pensar em nenhuma razão para acreditar em quaisquer dessas afirmações, e Harris não oferece muito como evidência exceto algumas citações de algumas obscuras pessoas de fé selecionadas.  Eu acho que a primeira afirmação poderia ser respondida empiricamente, mas ele não tenta. A segunda parece difícil de testar. É a terceira e duvidosa ao extremo. Para dar um exemplo óbvio, duas das pessoas mais inteligentes na Alemanha durante a subida de Hitler ao poder foram os filósofos Martin Heidegger e Carl Schmitt, e ambos vorazmente aceitaram o amparo nazista. Eu vou colocar o meu estoque moral nos Judeus e Cristãos supostamente irracionais que trabalharam contra o Nacional Socialismo.

Esse último exemplo, é claro, traz a luz o elefante cor-de-rosa que está presente no canto da sala de Harris. Se crenças de fato tornam as pessoas violentas, as crenças que mataram mais pessoas do que quaisquer outras são o Nazismo e Comunismo, um dos quais era não-religioso e o outro explicitamente  ateísta. A solução de Harris, como o leitor talvez consiga adivinhar, e dizer que o Nacional- Socialismo e o Comunismo eram, de fato, religiosos. Mas aqui os argumentos de Harris saem completamente dos trilhos. Harris tenta provar que a religião é a fonte da violência no mundo definindo religião como qualquer conjunto de crenças que torna as pessoas violentas. Isto é um erro, seguido de uma tautologia (repetição das mesmas idéias em formas diferentes), e disfarçado como uma demonstração.

A premissa final do argumento de Harris para a abolição das religiões é que a prevenção da violência é um imperativo ético supremo.  Enquanto eu mesmo concordo com esse ponto, ele o coloca num buraco negro lógico do qual nenhuma força consegue retirá-lo. Afinal, as pessoas que matam por razões religiosas não concordam com Harris sobre o que é de importância ética fundamental. Eles pensam que alguma outra coisa precede a prevenção do dano físico: talvez a justiça, a piedade ou retidão, ou a imposição da lei divina como o imperativo supremo, e que esses fins justificam os meios violentos. A questão, então, e como Harris defende sua visão moral acima da deles? A resposta e que ele não o faz.

Ele simplesmente afirma que “questões de certo e errado são realmente questões sobre a felicidade e sofrimento de criaturas  conscientes.” Quem disse?  Profissionais em ética ficarão surpresos de ouvir essa notícia, dado que a maioria deles discorda com o tipo de utilitarismo que está implícito nesta afirmação, como fazem a maioria das grandes figuras na história da filosofia moral. Quando isto vem, portanto, para justificar o cerne da sua visão de mundo moral e a fundamentação de seu argumento contra as religiões, Harris não tem nada a dizer. Ele mantem um dogmatismo ético que é tão livre de argumentos quanto às convicções de um fundamentalista radical.

Tanto para o triunfo da razão. Harris escreve com vigor e energia, mas seu estilo é colocado a serviço de argumentos terríveis. Porém, ele ainda é um homem jovem, então talvez algum dia sua lógica irá alcançar sua retórica. Vamos rezar.

Matthew Simpson  ensina filosofia n a Universidade Luterana  em Decorah, Iowa.  Seu livro Rousseau’s Theory of Freedom será lançado  pela  Continuum.

http://www.booksandculture.com/articles/webexclusives/2005/april/050404.html
Tradução: Denise Hostin

 

 

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